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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Agressão


Ele dormia profundamente, mesmo que apenas ressonasse: eu sabia que tinha o sono pesado. Mesmo assim, levantei da cama o mais cuidadosamente possível.
A porra que escorrera de dentro de mim para a parte interna das minhas coxas já estava fria, mas ainda era pegajosa. A sensação das pernas melecadas e grudando não me incomodava, em outros tempos eu até me sentiria feliz com isso; saber que era um fluído corporal dele, ali, também não incomodava: me causava nojo.
Não importava quantas vezes eu já tenha ido à polícia, quantas vezes tenha denunciado, ele nunca foi preso. Nunca retirei nenhuma das queixas, mas ele nem mesmo respondeu processo. De alguma forma, minha palavra nunca foi mais forte que a dele: para todos os efeitos, sempre foi consentido. Ser amarrada e amordaçada era joguinho sexual, apanhar também.
Uma vez ele apareceu todo machucado na delegacia para depor. As costas com arranhões tão fundos que pareciam cortes à navalha, um olho roxo, a boca cortada e as bolas inchadas. “Olha pra mim, delegada! Olha o que ela faz comigo!”, dizia ele, “A gente curtimu essas coisas, sabe. A senhora é casada, a senhora deve entender. São nossos joguinhos. Ela bate ni mim à valê purque eu gosto. E ela pede, otoridade, pr'eu batê nela tumém”. A própria delegada me contou isso, quando fez a acareação. Mesmo comigo desmentindo tudo aquilo, ela chegou a dizer para eu parar de mentir, se não ele teria todo o direito de me processar por calúnia e difamação.
Agora ele estava ali, dormindo profundamente na cama. O corpo intacto, sem qualquer ferimento ou machucado. Eu, em pé no meio do quarto, observando aquele monstro, tinha o canto da boca cortado – quando ele enfiou os quatro dedos entre meus dentes para eu não fechar a mandíbula, e puxou meus lábios para trás, abrindo espaço para enfiar até a minha garganta, me fazendo engasgar com aquele pedaço sujo de carne e com meu próprio vômito, que ele não se importou se jorrar por cima de si –, o rosto dolorido – dos tapas e socos – os antebraços e as mãos inchados e ainda dormentes – das cordas que ele usou para amarrar apertado meus braços às costas, impedindo a circulação –, e as pernas doloridas e bambas – também devido aos cordames.
Já fazia um ano que tinha parado de denunciar. Ele havia ameaçado a minha família, e eu sabia que era capaz. Logo que casamos, eu peguei ele na cama com outras. Tudo que ouvi dele era que ficaria tudo bem, que ele resolveria. Uma apareceu no jornal, dada como desaparecida, e acho que nunca encontraram o corpo. Uma outra, morta. Nessa época ele me batia fora do sexo, e não por qualquer coisa. Eu achava que eu era a errada, que eu que o tinha irritado, que ele era o homem bom que eu achei que fosse antes do casamento. Mesmo ele me traindo, eu aceitei, por um bom tempo, como coisa de homem.
Foi então que eu explodi, quando o peguei com uma menina de 16 anos. Eu voei nele, dei-lhe tapas onde pude alcançar, gritando que nunca maios aceitaria aquilo. Mas ele segurou meus braços e disse que ficaria tudo bem, que iria resolver. Quando tentei reagir, ele me deu um tapa no rosto que me derrubou e me deixou tonta. “Eu disse que resolvia, porra!”, ele gritou e saiu do quarto, nos deixando sozinhas. A menina ainda estava no canto da cama, o lençol cobrindo o corpo. Nos olhamos por um momento. Seus olhos estavam apavorados, e lágrimas de medo escorriam por suas faces. Então ele retornou, trazendo algo nas mãos que não pude reconhecer. Parou entre eu e ela, erguendo a mão em direção à cama. “Pam! Pam!”. O cheiro terrível de coisa quente ou queimada encheu meus pulmões, e ele saiu novamente do quarto. Eu desviei os olhos, mas havia visto o suficiente: da menina, vestia sangue do peito e da cabeça. Não era preciso ser a mulher mais inteligente do mundo para entender que ele havia matado todas as outras.
Eu pedi o divórcio, mas ele negou. Disse que, se era assim, ele não me trairia mais, que faria comigo tudo que ele fazia com as outras. Se eu não era capaz de entendê-lo, de entender que ele me respeitava como mulher, como esposa, que se eu queria ser tratado como uma vagabunda qualquer, era assim que seria. Eu tinha boca, cu e boceta, serviria tanto quanto qualquer outra para o que ele gostava, já que eu não queria mais me dar ao respeito de entendê-lo.
A primeira noite foi horrível, e nenhuma das outras foi melhor. Ele disse que eu me acostumaria, mas nunca me acostumei. Que eu, como qualquer das outras vadias, acabaria gostando daquilo. Mas meu sistema digestivo todo doía, os hematomas me envergonhavam... até que ele quebrou meu braço. Oficialmente, eu caí da escada. Extraoficialmente, ele me arrastou para o quarto, dobrou propositalmente meu braço às minhas costas até ouvir o estalo. Então forçou mais, para ouvir o segundo, o terceiro. O braço cedeu de vez, ele parou; mas a dor foi tão grande que eu desmaiei. Quando acordei, estava toda suja de esperma por todo o corpo. Ele mandou eu me lavar e não dar um pio quando chegássemos ao hospital...
Mas eu contei. Assim que ficamos sozinhos, médico e eu, eu contei tudo. Foi a primeira vez que paramos na delegacia. Contei tudo que sabia ao delegado, que fez todos os procedimentos possíveis e disse que aquele verme nunca mais tocaria em mim. Dois dias depois, ele é encontrado morto, o corpo já apodrecendo dentro de uma caixa d'água. Nunca mais ninguém fez nada para me ajudar.
Tinha oito anos que éramos casados, e cinco desde que ele começou a me bater todo o dia, praticamente a todo o momento. Eu tentei me matar, mas da primeira vez fui salva por uma vizinha, que mesmo sabendo pelo que eu passava, não quis se intrometer. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Ele não ficou sabendo. Da segunda vez, ele me encontrou sangrando, com os pulsos cortados. Quando acordei no hospital, ele estava ao meu lado. “Feio esses corte... O dotor disse que talvez tu não mexa mais as mão direito. Só te digo uma coisa: se tu tentá fazê isso de novo, tua mãe morre! E outra, vô pagá a fisioterapia, mas se tu, em seis meses, não tiver batendo direitinho uma pra mim, quem morre é teu pai, qu'eu sei que tu nem gosta tanto assim do véio, tu aprendê a deixá de besta.”
Depois disso, ele disse que tinha cansado de dar “migué” em polícial pelas minhas frescuras: ou eu parava, ou morriam meus pais como aviso; e se eu tentasse de novo, quem “dançava” eram meus irmãos; e se ainda assim eu não entendesse, iam meus sobrinhos; só em último caso ele me mataria, mas antes faria eu desejar a morte a cada segundinho após ter feito a próxima denúncia depois daquele aviso. A brincadeira tinha sido divertida, mas já tava enchendo.
Mas ele fez o favor de me fazer desejar morrer a cada instante desse ano. Começou a trazer qualquer homem pra dentro de casa, pra transar comigo. Começou a me vender para quem quisesse, e me dar de graça para aqueles que não podiam pagar. Eu sempre estava amordaçada e amarrada. Algumas vezes ele também me vendava, outras me pendurava pelos braços. Todo o tipo de equipamento começou a ser usado em mim, até que eu quase perdi um mamilo. Depois que saí do hospital, com todos os procedimentos feitos, ele me obrigou a vê-lo bater no cara que quase me mutilou até matá-lo com as mãos nuas.
Levei muito tempo para reunir coragem o suficiente para fazer aquilo, mas finalmente havia conseguido. Saí do quarto, atravessei a casa e fui até o galpão. Havia um machado lá, e eu tinha sido criada cortando lenha... Se eu voltasse ao quarto antes dele acordar, teria uma única chance de relembrar como se partia uma tora. Não que tivesse medo que ele pudesse reagir e me impedir de alguma coisa, mas não sei se teria coragem para um segundo golpe.
Entrei de volta ao quarto. Ele nem ao menos havia se mexido. Acendi a luz: a claridade da janela não seria o suficiente. Ele acordou se piscando, se virou de barriga para cima. Ergui o machado enquanto ele erguia o braço para defender os olhos da luz. A lâmina desceu rasgando o ar num zunido pesado. O barulho foi um misto sólido, que me lembrou o som da madeira sendo partida, e gosmento, como o de um excremento caindo na água do sanitário.
Apenas soltei o cabo do machado. Reuni minhas roupas e joguei no porta-malas. Tomei um banho quente bem demorado, como não tomava à anos, e me vesti com a melhor roupa que eu tinha. Peguei todo o dinheiro que havia em casa, assim como todos os cartões. Nunca havia tirado a carteira de motorista, mas ser presa por dirigir sem saber não seria nada perto do que me aconteceria quando achassem o corpo. Na verdade, agora eu estava livre como jamais estive na vida, então nada mais me importava.

2 comentários:

  1. Esse texto acabou me deixando aterrorizada pelo que o parceiro dessa moça acabou fazendo com ela e me fez enxergar a partir dos olhos dela todo o sofrimento, todo o ódio e o nojo que ela sentia dele. Posso dizer que seu texto acabou se tornando bem vivo, proporcionando ao leitor a experiência de imaginar como cada cena acontecia e esse é um ponto positivo.

    Sua escrita flui bem, não é aquele tipo de escrita com muitos detalhes, ele é leve mas ao mesmo tempo com uma atmosfera pesada que foi super bem desenvolvida.

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  2. Ora, muito obrigado, Talita =D
    Nem sei o que dizer, só posso agradecer =D

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