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quarta-feira, 13 de julho de 2011

Esquizofrenia - Capítulo 1 - Parte 6

Landau entrou em seu escritório por uma passagem lateral. Além do próprio diretor do hospital, apenas a enfermeira Lisa e Gerard, o chefe da segurança sabiam daquela entrada paralela. A porta fechou-se sozinha atrás do psiquiatra, enquanto ele olhava receoso para as mãos sujas de sangue, como em dúvida se era certo o que acabara de fazer.
Entretanto, a dúvida que seus olhos demonstravam era apenas uma pequena lembrança em sua alma – se é que ainda possuía uma – de uma dúvida que já não tinha desde a segunda vez que entrara naquela sala escondida.
Atravessou rapidamente o escritório e lavou-se na pia do banheiro. Sangue fresco não era difícil de sair, seja das mãos encharcadas, seja do rosto respigado. Jogou o jaleco e os sapatos indiferentemente junto às demais peças sujas, como quem joga uma camiseta suja apenas do leve suor de um dia frio.
Devidamente limpo – mãos, rosto e vestes, mas não o músculo negro que bombiava o seu próprio sangue –, Landau serviu-se de uma boa dose de uísque e sentou-se à sua escrivaninha. Olhando fixo para a porta principal, a única nas plantas e documentos do hospital, e para qualquer um que entrasse ali, enquanto pegava o chaveiro do bolso, encontrava uma chave e, com ela, abria a primeira gaveta de sua mesa.
Pegara um frasco de comprimidos e o depositava ao lado do copo cheio e sem gelo. Vasculhou, então, com as pontas dos dedos até encontrar um pequeno filamento que, ao puxar, retirou todo o tampo da gaveta, revelando um fundo falso, e retirou de lá uma folha A4 já amarelada. Fechou e chaveou a gaveta logo em seguida.
Só então desviando os olhos da porta, deixou-os repousar sobre a folha rabiscada à sua frente. Abriu o pequeno frasco e retirou de lá o primeiro comprimido, colocou-o na boca e empurrou-o com a língua até os cisos. Mastigando, avaliou o desenho que lhe tirara muitas noites de sono, buscando por um sentido – pelo menos um único sentido que fosse – para aquela imagem aterradora, querendo ajudar o menino que o fizera.
Tomou o primeiro gole, observando o traçado tremulosamente firme e cada marca onde a ponta quebrara, lembrando de que William, mesmo hipnotizado, esperara que Landau se aproximasse, pegasse o lápis, o apontasse e entregasse novamente à mão posicionada sobre a prancheta do menino que desenhava em pé.
Levou mais um comprimido à boca, arrastando-o com a língua pelos dentes do outro lado. Enquanto mordia, olhava para aquilo que descrevera à sua namorada como “o chá do Chapeleiro aos pés de Cristo”. Ninguém que viu aquele desenho conseguiu encontrar qualquer lógica nele, qualquer sentimento que pudesse tê-lo norteado; era bem-feito demais para alguém hipnotizado, em choque ou qualquer coisa que o valesse. Era bem feito demais para representar qualquer coisa que um garoto como William pudesse ter visto e/ou feito, tendo em vista tudo o que e como aconteceu.
Uma imagem que certamente não teria significado, atualmente, para Landau, não fosse um achado no sótão da Mansão Blake. Não fosse a ponta do precipício no qual o doutor se jogara sem saber, mas que, ao perceber como, porque e para onde caía, procurou com vontade tomar cada vez mais impulso para baixo. Algo que, talvez, qualquer pessoa faça, frente a conquista de novos poderes, sejam, por exemplo, econômicos, ou sociais.
No dia seguinte ao desenho, cinco dias depois do incidente, a mansão estava completamente vazia. Azmaria estava internada em estado de choque; William era acompanhado por uma equipe exageradamente grande de psicólogos, psiquiatras e psicopedagogos que discutiam o efeito como causa de uma educação falha, bullyng escolar, negligência materna, ou qualquer explicação sem cabimento; Isabella estava em uma gaveta no IML à espera de  um parente que retirasse o corpo, ou o que foi possível reconstruir dele; e o policial, encarregado de impedir que pessoas não-autorizadas entrassem e mexessem onde não deveriam, dormia tranquilamente dentro da viatura estacionada na entrada da garagem.
A casa ainda estava sob alguma investigação para reconstituir o crime, mas Landau – como líder da equipe psicótica que cuidava do principal suspeito, e com a desculpa de que a casa poderia contar alguns detalhes importantes sobre o garoto – conseguira autorização para vasculhar o que quisesse dentro da casa... desde que acompanhado pelo detetive encarregado do caso.
Na época, Landau não se importava em colaborar com a investigação policial. Muito pelo contrário, sua intenção era justamente ajudar em tudo que estivesse ao seu alcance para solucionar aquele terrível assassinato, e salvar a família que conhecia à tanto tempo da destruição certa.
A busca durara uma hora até o frustrado psicólogo chegar à entrada do sótão. Revendo, agora, passo à passo sua rápida passagem pela casa, Landau era capaz de perceber como cada detalhe, como a posição de cada objeto, cada móvel pareciam indicar, invariavelmente, para o sótão, querendo lhe poupar da perda de tempo. Assim como o fato de o detetive ter sido, justamente no momento em que subiriam a escada retrátil, acometido por uma necessidade de ir ao banheiro grande suficiente para que o policial permitisse que o médico continuasse sozinho.
O que encontrara lá em cima, na mansão, atualmente estava reconstituído em sua sala secreta: a mesinha redonda posta com uma chaleira e quatro xícaras com pires, mas apenas dois bandos posicionados diretamente um à frente do outro. Os itens só puderam ser removidos da casa quase seis meses depois do ocorrido, com autorização – concedida de bom grato, na esperança de que ajudassem na “cura” de seu filho – da proprietária, quando Azmaria recebera alta e a polícia já havia feito com o imóvel tudo que suas mentes mais brilhantes pudessem ter imaginado para chegar à algum lugar com a investigação; mas desde a primeira visita os símbolos estranhos decorando a porcelana do jogo de chá e entalhados na mesa e na cadeira pareceram saltar aos olhos de Landau, enquanto passavam despercebidos para qualquer outra pessoa.
O médico havia fotografado tudo com seu celular e teve de se despir de seu ceticismo científico para lidar com aquilo. Muitos dizem que os céticos não vêem fantasmas ou não são agraciados por milagres porque simplesmente são incapazes de acreditar, porém, a cena montada naquele sótão era a mesma desenhada por William, e talvez a crença fosse a única maneira de ajudá-lo. Mas não haviam fontes de pesquisa.
Os símbolos levaram Landau para os sites mais imbecis que já havia acessado. Páginas que falavam de uma tal de criptologia, pseudociência que dizia estudar vampiros, sobre como Deus fora assassinado pelos humanos na Idade das Trevas, como atingir o Plano Alfa através da meditação e como mentalizá-lo para conseguir uma vaga por mais lotado que estivesse o estacionamento, e quaisquer coisas do tipo. Mas as referências eram sempre as mesmas: Eles e o Livro de Anon, ambos constantemente citados em vários textos, usados como base para tornar verídico o que cada site apresentava, mas nunca fazendo qualquer menção sobre o que de fato seriam.
Landau chegara a descobrir, posteriormente, o que era cada coisa, como funcionava e para o que servia, se é que estes seriam os termos corretos. Agora, engolindo o quarto ou quinto comprimido com o sexto ou sétimo pequeno gole de uísque, observava o que lhe fizera começar com aquilo tudo.
Estava perdido em pensamentos, esperando que o efeito – ou do que fizera na sala oculta, ou dos remédios em conjunto com a bebida, o que viesse primeiro – começasse, quando ouviu uma batida leve. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, a porta se abriu e uma enfermeira fez-se ver; acompanhado dela, estava um homem velho, as costas arqueadas e os olhos esbranquiçados, vestido com uma batina preta.
- Não se levante, filho – disse o padre para Landau, e então, virando-se para a enfermeira, pediu – Pode me deixar aqui, moça, eu conheço este escritório melhor que a minha igreja.
Com um sorriso gentil, ela soltou o braço do velho, que apoiou firme a bengala no chão, e sorriu para Landau, que lhe respondeu com um aceno de cabeça. O ancião entrou e fechou a porta, sua voz ao mesmo tempo trêmula e forte fez ouvir novamente:
- Já disse que não, doutor Landau. Termine sua bebida e guarde seus papéis. Depois que o diretor do hospital sair desta sala, aí sim venha me cumprimentar como o Carlinhos que sempre quis tão bem. Eu espero... em pé, claro, porque as costas já não me permitem sentar e levantar a hora que bem entendo.
Em silêncio, Landau guardou o desenho no fundo falso e o frasco na gaveta. Virou o ultimo gole de uísque e, ao largar o copo no barzinho, abriu o frigobar e tomou um grande gole de água com gás. Desejoso de que não estivesse fedendo à álcool, se aproximou do padre e se ajoelhou à sua frente.
- Sua bênção, professor doutor, senhor Clower – disse em respeitosa brincadeira, beijando a mão do ancião.
“Que Deus te abençoe, meu filho”, respondera o padre, mas Landau poderia jurar que ouvira o outro dizer “Ele”, se é que não tivesse dito no plural.
- Sabe, Carlos, tenho andado preocupado contigo.
- Porque, padre?
- Tenho tido sonhos estranhos e acordado pensando, quando não gritando teu nome. E, desde que esta porta se abriu, poderia jurar que vejo uma forte luz vermelha – riu, mas Landau percebia o nervosismo mal disfarçado naquilo que deveria soar como divertimento – Mas já não enxergo a tanto tempo, não é mesmo?
“Sim”, pensou o médico, “desde o dia que tudo isso começara”