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sábado, 8 de dezembro de 2012

Doce até não enjoar

Você me bagunça e tumultua tudo em mim. Me faz sorrir de longe, e prende meu pensamento em ti quando perto. Me estremece, me sacode, me abre os olhos. Me julga, pune, arde, morde, cospe com um olhar terno, ou com aquele olhar distante, virado pro lado, perdido entre prédios.
Me aproxima e me afasta, me rechaça sem me deixar te soltar. Me abraça, me sorri boba, me xinga, reclama, desmancha todo meu raciocínio. Me faz entender sobre mim, me facilita, me complica, me assusta. Enforca meu serviço, me rouba o ar; me mata pelo que eu disse, mesmo quando te faz sorrir.
Me morde a boca, me arranha o pescoço, me arranca os cabelos, e é como se nada tivesse acontecido. Me magoa e adula, e tudo que posso é sorrir. Bobo, tranquilo, calmo como nunca. Decidido, convicto, compacto. Ainda assim, de perto, minha perna treme, minha mão fica indecisa de onde ir, minha voz falha. Me sinto mais adulto com a situação, um adolescente qualquer quando abraçados, uma criança imatura que acha que é grande sob teu olhar.
É estranho, estúpido, incomum. Tão agradável tudo. São dois polos, duas situações, quase dois ímãs de mesma polaridade que se repelem, mas ainda assim eu aprendi, eu consegui. Concilio tranquilo, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e agora acabei de falar como se não fosse. O é. É natural demais, tudo, cada palavra, cada gesto, cada impacto quer tu provoca em mim.
De todas as besteiras que eu falo, tu escuta, sorri, responde. Parece não me ignorar em momento algum. A memória falha, eu falo, tu fala. É como se não houvesse fim nos assuntos, como se fosse um assunto sem fim. Simplesmente a gente conversa e conversa e conversa e conversa. Ri, brinca um com o outro, tu me olha feio e me dá vontade de rir. Se finge de ofendida, se faz de rogada, se preocupa comigo e não admite uma única palavra dita pelos movimentos das tuas mãos ou pelo olhar que me lança.
A amizade de que eu precisava e nem sabia. O tempo, o espaço, a liberdade de não ser mal interpretado. Minhas piadinhas sem graça, ou as maliciosas, minhas frases sem nexo, todas sempre tão recebidas, incluso pelo teu olhar de desaprovação. Todas completando um panorama a parte de todo o cinza desta cidade fedida.
É um me compreender sem esforço, um nos ter sem nos prender, uma distância segura num abraço apertado; um beijo quente no rosto ou de carinho na boca, e vice-versa; um selinho escondido no escuro da escada; uma fruta incompatível; e a tua cabeça descansando em meu peito, mesmo que não tenhamos feito absolutamente nada.
Uma guia, uma bússola, o fim de uma certeza, o começo de uma jornada. Uma amizade, pura, única, contundente amizade. Bela, simples e complicada, sincera em olhos profundos de alma e tormentos tristes e alegres. A incerteza da falta de álcool no sangue, a certeza da cara à tapa, a dúvida de um futuro incerto e inconformável; e as nuvens de chuva se dissipando, escapando por entre os dedos, deixando o sol rasgar o céu e te suar a testa e te queimar a pele.
Numa busca implacável, um apoio inesperado. Uma tranquilidade transcendente, um sorriso fácil, nossas histórias se descortinando simples. Dois marcos, duas águas, dois sorvetes, e aquele calor infernal. Teus olhos fechados sem esforço, teu queixo levemente levantado, teu pescoço exposto, tuas mãos contra meu rosto, fechadas contra meus cabelos. Tuas unhas acarinhando meu pescoço, e as minhas nas tuas costas, de levinho, de mansinho. Tua mão no meu rosto, num pedido de que eu pare, enquanto tu mesma não para.
Metido, intrometido, irritante, teu olhar de desaprovação, mas um abraço e teu sorriso retorna. Autoritária, exigente, fazida, me desaprova, me prova, me tenta. Me entende, me surpreende, não faz nada e mesmo assim me faz um bem. Presença marcante, constante, confiante, quase arrogante, e tão querida, afável, próxima. E o silêncio no teu abraço não incomoda, não constrange, não afasta, não é uma barreira para a próxima palavra, próxima enxurrada de letras proferidas, próxima conversa interminável.
E só espero a permanência, nossa amizade, nossos risos. Que o tempo não nos afaste, não pressione, não importune. Teu sorriso aos meus olhos, teu olhar sincero, tua facilidade complicada e descomplicada. Egoísmo meu. Que se faça a luz da minha parte, para fazer valer a pena tudo isso.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Feliz, feliz

O quarto estava escurecido, banhado apenas por uma bruxuleante luz azulada. Também estava repleto de um agradável cheiro de morango, vindo dela. Meu coração batia acelerado, mas eu continuava em pé, no meio do caminho entre a cama e o banheiro. Da porta, ela me olhava.
Eu não sabia bem o que estava fazendo ali. Me deixei levar. Havíamos conversado. Ela havia me beijado de repente. Tinha me convidado para uma cerveja, e eu, fraco, no primeiro copo já estava meio tonto. Entrei em seu carro, e enquanto rodávamos, a mão direita dela só deixava minha coxa esquerda para trocar a marcha. O vento batia em meu rosto pela janela aberta, enquanto ela acelerava mais. Eu fechei os olhos, entre um bem e um mal estar, quando ela me “acordou”: sua mão descera para a parte interna da coxa, e subira até a minha virilha. Instintivamente, fechei as penas. Ela sorriu com um barulhinho alto na garganta, e pressionou os dedos contra mim. Me traí, e num olhar rápido para meu rosto que avermelhava, seu sorriso aumentou.
Permanecia vestido, inseguro, estático onde ela havia me deixado quando entrou no banheiro. Agora ela me olhava da porta, a luz deixando seu rosto mais bonito, seu olhar mais voraz e seu sorriso mais malicioso. Ela havia pego uma caixinha em cima do frigobar, mas não vi do que se tratava. À minha frente, vestindo apenas uma calcinha, pelo cheiro de morango, eu desconfiei do que se tratava a caixa.
Ela caminhou na minha direção, um passo lentamente após o outro, um pé exatamente a frente do outro. A luz brincava com as sombras em sua face, provocadas pelo cabelo solto que emolduravam seu rosto. Me envolvendo pela cintura, ela me olhou nos olhos, o sorriso desaparecendo.
- Tu não quer?
Eu respondi com um beijo, mas meus braços permaneceram estáticos. Me beijando, ela puxou meus braços para seu corpo. Por cima de seu braço, coloquei a mão na parte baixa de suas costas e pressionei seu corpo contra o meu. Com a outra mão, toquei seu rosto, pressionei sua nuca. Podia sentir sua pele quente mesmo por cima da roupa.
O beijo parecia nunca mais terminar. Ela tocou meu abdômen indefinido. Arranhou minhas costas. Nossas bocas se separaram por milésimos de segundo enquanto tirava a minha camiseta. Acho que senti seus mamilos antes de sentir o calor de seus seios. Ela arrancou meu sinto, enquanto eu puxava seus cabelos da nuca, fazia sua cabeça pender para trás, e eu beijava seu pescoço e a base de suas orelhas.
Logo meu mundo era a sombra de seus cabelos, a luz revelando vez ou outra seu sorriso, e o peso de seu corpo sobre o meu. No começo, minhas mãos foram recolocadas por ela em seu corpo. Por motivo ou outro, demorou para eu me sentir tranquilo para tocá-la a vontade. Por outro lado, as mãos dela corriam pelo meu, quando não pressionavam meu peito para apoiar-se com as costas quase eretas.
Chegou a me arranhar com as unhas vez ou outra, mas tinha uma predileção por me morder. Seus dentes afundavam e arranhavam minha pele, por toda a extensão do pescoço aos ombros. Uma de suas dentadas, no braço esquerdo, foi forte o suficiente para que eu soltasse um grito involuntário.
- Doeu?
- Sim – respondi entre os dentes
- Tu mereceu.
Seu sorriso, naquela luz, foi terrível. Deveria ser daquele jeito que se sentiam os parceiros das viúvas-negras. Meu corpo retesou involuntariamente, e ela fez de novo aquele risinho na garganta: eu havia retesado todos meus músculos. Ela também retesou os dela, e mordeu a minha orelha de leve.
- Calma – disse, antes de me morder, e meu corpo instintivamente relaxou – Mas não tanto – e riu, apertando novamente “aqueles” músculos.
Ela controlava totalmente a situação, mas por algum motivo eu começa a me sentir mais tranquilo nas mãos dela... ou em seus dentes. Foi quando ela jogou seu corpo para trás, as mãos pressionando meu peito até o ar fugir de meus pulmões, as unhas rasgando a minha pele. Seu cabelo voou com o movimento para longe de seu rosto, mas só pude ver sua expressão pelo espelho no teto.
Só pude ver sua expressão por um único instante, até minha visão desaparecer. Era o peso, o cheiro, a pele. O corpo por onde minha boca tinha viajado, que parecia parte comum ao meu.
Deitada em cima de mim, agora finalmente no escuro, eu a sentia sorrir, com seu rosto em meu peito. Ela suspirou duas palavras: “Feliz, feliz”. E eu, ali, sorrindo, todo mordido.

domingo, 14 de outubro de 2012

Roland - Parte 5

A bruja sabia tudo que ele tinha feito, cada passo que havia dado em sua mente. O que era estranho, porque ela não parecia sábia o suficiente para sequer conhecer aquilo. De qualquer forma, ela não mentia, não havia mexido em suas memórias: as caixas estavam caídas das prateleiras, mas não abertas.
Era desconfortável. Muito. Principalmente porque ele estava deitado em uma cama. Uma cama! Roland não era criativo, então não lhe passava pela cabeça qualquer justificativa para estar ali.
Porque, ele queria saber. Porque sim, era a resposta dela. Ele tentara iniciar uma conversa, de forma respeitosa, chamando-a por velha mãe. Ela deu um sorrisinho amarelo, de canto de boca, e lhe interrompeu dizendo que não era tão velha assim. Ele entendeu imediatamente: ela era uma jovem poderosa, não uma velha sábia. Ela era inconsequente, não calculista. Ainda assim, ela era perigosa demais.
- Eu sei o que tu pretendes. O hombre en negro me avisou sobre ti.
Roland calou-se. Qualquer coisa que dissesse agora seria usado contra ele. Olhá-la sem frieza deveria bastar.
E bastou.
- Sei lo que vieste hacer aquí, pistoleiro – o gaucho (não) estremeceu ante aquela palavra – pero, el viejo no te disse o todo. Se dissesse a verdade, tu no virias até aqui. Se ele mentisse, tu perceberias y también no virias.
O homem tentou levantar-se; aquele era um bom momento para estarem à mesma altura física. De onde estava, ela facilmente se sentia superior, com ele em uma posição de fragilidade. Tentou, mas não conseguiu. A dor de cabeça, ao acordar, era tão intensa que ele acreditou não sentir dores pelo restante do corpo. Agora ele percebia que, na verdade, não sentia nada do pescoço para baixo.
Procurou não demonstrar, mas já era tarde.
- Machucaste as costas. No esperava ferir-te, pero... Bueno, cuidarei de ti, no voy a salir de tu lado hasta que te recuperes – ao seu lado havia uma mesinha. Sobre esta, uma cubuquinha que a bruja tomou nas mãos – Beba, te fará melhorar rápido.
Roland pesou as possibilidades. Se quisesse matá-lo, já o teria feito. Se quisesse seus segredos, teria buscado em sua mente quando pôde. Com um sorriso de agradecimento, sorveu da primeira colher. A cada colherada ganha, sentia-se mais leve e sonolento, ao mesmo tempo que sua dor parecia desaparecer. Não saberia precisar se sonhava ou não ao ouví-la raspar a colher no prato.
Quando acordou, ela estava novamente ao seu lado. Decidiu manter a noção de tempo. Quando tomou a sopa a primeira vez, era dia. Agora, noite. Conversaram amenidades, e ela lhe serviu outra sopa. Apenas pelo cheiro ele foi capaz de perceber que eram diferentes. E na terceira vez que despertou era noite. Quis crer que era a mesma noite, mas seu estômago roncava de fome.
Tentou manter a cabeça clara, mas parecia impossível. Acordava ora de dia, ora de noite, por vezes consecutivas à noite, por vezes, ao dia. Só pôde ter certeza que a primeira sopa, a mais apimentada, lhe permitia dormir menos, já que não acordava com tanta fome; enquanto a segunda, de gosto mais acridoce, lhe fazia dormir mais.
Os sonos não eram tranquilhos, nenhum pouco. Eram tomados de pesadelos terríveis e lembranças piores ainda. E acordado, suas esperanças não eram melhores. A bruja parecia cada vez mais feliz por sua estadia ali, sua total fragilidade e incapacidade. Talvez ela não estivesse tentando curá-lo. Apenas querendo mantê-lo vivo, como confortável companhia que nunca a deixaria.

*

Quando abriu os olhos, ali estava Gabrielle. Roland não tinha certeza, mas ela deveria ter pelo menos 17 anos quando ele nascera, ainda assim não conseguia lembrar dela com a aparência de quarentona que deveria ter quando moço. Para ele, a aparência de sua mãe seria para sempre a de uma moça de 15 ou 16 anos. E ali estava ela, lhe sorrindo.
Estavam no meio do pasto da estância de seu pai, mas não havia qualquer animal. Caminhavam, como cansaram de fazer, próximo à invernada, mas não havia mais nada. Animal, plantação, grama... nada em lugar algum à vista. Não era como Roland se lembrava, mas era como imaginava que tinha ficado depois de tudo aquilo. Não conversavam: os lábios dela estavam fixos naquele sorriso que fazia seu filho pensar em morte; mas ainda assim a voz dela ecoava por seus ouvidos como uma canção de ninar há muito deixada para trás e que só se é capaz de recordar palavras soltas. A Torre, os Doze Guardiões, a Alma Farrapa e o coração doce da prenda escolhida.
Quando virou o rosto novamente em sua direção, não era mais sua mão ao seu lado, mas Susana. Roland lembrava de seu rosto quase nitidamente como era no dia anterior à fogueira. Ele era incapaz de lembrar, como se alguém tivesse lhe tomado à força essas memórias, de que fogueira era essa, mas tinha certeza de que sua amada havia morrido em decorrência dela. O gaucho quis tocá-la, mas não pode: seus braços pareciam congelados junto ao corpo, ao vislumbrar em seus lábios rosados o mesmo sorriso de morte de Gabrielle.
Desviou o olhar, e já não estavam no campo. Roland havia descrito vezes mil à Susana sobre onde estavam agora, e quisera muito tê-la levado lá. Era a Sala do Tempo de sua mãe: um amplo salão construído para ser ventilado e fresco nos dias quentes, mas conservar toda a caloria produzida pelo grande fogão à lenha – a segunda peça mais importante dali – nos dias frios. Seus pais costumavam receber os amigos mais íntimos nos tempos de paz, e foi onde Bento foi aclamado como o general que os guiaria em defesa contra as investidas do Império.
Roland e Susana olhavam para uma tapeçaria antiga que decorava toda a parede norte: a Árvore. Gabrielle costumava contar sobre a linhagem dela – e dele –, mostrando os nomes bordados e declamando os feitos. O gaucho sempre desejara declamar ele próprio, pela primeira vez, cada um daqueles longos e belos poemas à sua prenda, quando lhe tirasse do Prata, já casados. Agora estavam ali, tantos anos depois de sua morte, e ele não era capaz nem de olhá-la. Não precisava, de qualquer forma: a voz dela sussurrava uma milonga que ele conhecia bem, sobre tudo que eles também sentiram juntos, sobre como foi doloroso perdê-la para a Eternidade e de como ela o amava ainda assim.
Roland acordou chorando. A bruja lhe olhava com um quê de surpresa, mas ele não tentou disfarçar. Estava satisfeito com a certeza de que não precisara narrar à Susana os feitos de seus antepassados: ela já os sabia de cor pelos lábios de Gabrielle.

*

O gaucho estava gritando “avante!”, já no meio de um campo de batalha. Tentavam atravessar a divisa da Província quando foram emboscados pelos Imperiais. Os lanceiros cobriam a retaguarda com mais honra e bravura que os soldados treinados que Roland liderava pela frente. Estavam cercados, e sem grandes chances de fuga caso surgisse uma oportunidade. Ele morreria lutando, assim como seus lanceiros. Seus amigos também, diferente de seus soldados que pareciam procurar pelo momento certo de mudar de lado.
O problema é que, diferente de todos os demais dispostos à morrer, Roland sobrevivera. Os enfrentamentos costumam ser confusos enquanto ocorrem, e costumam ficar mais e mais desconexos conforme o tempo e a memória trabalham sobre os gritos de dor e raiva, sobre o som tilintante do metal contra metal e o som abafado e úmido do metal contra a pele e a carne, sobre o calor da movimentação das muitas pessoas e o calor do sangue que se acumula no mais pequeno arranhão e que jorra do mais profundo ferimento, sobre o estrondo das armas de fogos, sobre o cheiro ferroso do sangue e o cheiro de pólvora queimada.
O problema é que, diferente de todos os que queriam fugir e sobreviver, Roland. Cuthbert estava quase à seus pés, com um olho fechado enquanto o outro, fora da órbita, parecia lhe encarar. Seu melhor amigo segurava o Chifre firmemente na mão esquerda, enquanto a arma já havia escorregado de sua mão direita. O gaucho não consegue se lembrar de ter sequer se abaixado, mas o Chifre estava em seus pertences quando chegou em casa. Alaide estava encoberto por alguns lanceiros; morrera protegendo um deles que fora gravemente ferido, morrera sendo protegido pelos outros cinco que formaram um círculo em seu entorno. De João, sobrara uma massa de carne, osso e tecido pisoteada pelos cavalos Imperiais. Não se lembrava de ter olhado tempo suficiente para os rostos de seus mortos, mas apostaria sua vida de que na face de cada um dos três estava o sorriso de morte de sua mãe.
E Roland estava sozinho, no meio de mortos por todos os lados. Já não havia diferença entre cor de pele, ou mesmo entre homem e cavalo. Seus sangues se misturaram no chão e seus corpos apodreceriam lado a lado pelo correr dos dias. Aquela era a última batalha: o Império havia ganho a guerra, e o gaucho teria apenas tempo de partir novamente antes de tomarem a Província. Não deveria ter ocorrido, era contra o Tratado... mas ninguém teria ouvido, aquilo era apenas a demonstração de que o documento de nada tinha valor aos Imperiais.
Quando acordou, recebia a estranha sopa, na boca, pela bruja. “No fim, te apiedaste de mim”, disse, e sua resposta foi o sorriso de morte num rosto muito mais novo do que Roland lembrava naquela mulher.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Balanço Pós Final de Semana do Amigo

Alô você, amiga, que tem um namorado que diz-se apaixonado por qualquer colega de trabalho que olha em sua direção, e espalha geral que é recíproco porque ela lhe dá bom dia.
Alô você, amigo, que foi demitido e ganhou um abraço e um beijo daquele pessoal que sempre te chamou de insuportável pelas costas e de fedorento pela cor da tua pele.
Alô você, amiga, que tem um namorado tão, mas tão legal que, mesmo tendo sido a primeira dele, não consegue não traí-lo com a desculpa de querer viver tudo e intensamente.
Alô você, amigo, que está casado à tanto tempo que esqueceu de que tua esposa não é parte de ti, que precisa ser valorizada pelos valores dela e não os teus.
Alô você, amiga, que já não sabe em qual dos subordinados e colegas de trabalho confiar, já que é só tu virar as costas e já começam as perguntas e as respostas sem qualquer esforço.
Alô você, amigo, que se faz de engraçado, mas é cínico e vive só esperando para dar o bote, jogar com toda a informação que consegue pelas costas de quem te considerara.
Alô você, amiga, que fala de todo teu círculo social pelas costas, e ainda quer ficar braba quando um deles vai conversar com alguém que tu repudia.
Alô você, amigo, que fuma maconha e é à favor da legalização, mas já está a quase 10 anos na faculdade, em uma universidade paga e cara.
Alô você, amiga, que tem nobreza financeira e pobreza mental e espiritual, que acha o máximo postar fotos de viagem internacional com legenda em inglês onde tu aparece sozinha.
Alô você, amigo, que lutou pelo amor daquela menina, que lutou para provar à ela o quão linda era mesmo sem o braço, que lutou para não perdê-la e que luta todo o dia por tê-la perdido para Deus.
Alô você, amiga, que acha que Rock é preconceito contra todo e qualquer outro tipo de música, de ideologia, de filme, de literatura, de ciência e de qualquer outra coisa que tu não gosta.
Alô você, querido amigo!
Alô você, querida amiga!
Alô você, que enche a boca para dizer que eu sou o errado, que eu sou o retardado, que eu sou o imbecil.
Alô você, que está rodeado de pessoas que não pode confiar, que se joga em covil de cobras e que as cria e alimenta, que não é confiável e que é uma cobra criada, que procura um jeito de se beneficiar de cada instante mesmo quando só lhe ofereciam um sorriso, que mente, ilude e engana, que é fútil, raso, superficial e se sente superior, que conhece a Europa e ignora o porque alguém sente saudades de ti ou te vira as costas, que come ovo cozido e arrota pato ao molho branco, que vive de aparências, que esconde segredos de ti mesmo, que acredita que um bom amigo é sempre o pior inimigo.
Alô você! Alô você!

Os Barcos

"E você diz que tudo terminou, mas qualquer um pode ver: só terminou pra você". Tudo bem, eu sei; de fato nunca tivemos nada. Mas realmente nunca fomos nada um para o outro? Nunca significamos nada? Não fizemos diferença na vida um do outro? Absolutamente nenhuma?
E eu sei bem que a gente só lembra do que nunca aconteceu. Por isso eu lembro de tanta coisa? Nós não vivemos nada, é por isso que eu lembro de ti? São apenas conversas que nunca tivemos? Noites em claro que nunca passamos? Juras nunca proferidas? Promessas de vida que nunca, se quer, sonharam em nascer?
Pô! Em que mundo insensível tu vive? Que descrença, que desamor é esse? Às vezes eu queria que tu olhasse nos meus olhos e me dissesse que nunca foi nada. Às vezes tudo que eu quero é ver a indiferença nos teus olhos, a inexistência de tudo que eu acho que nos existiu. Às vezes eu quero ter a certeza de que tu nunca pensou em mim, no escuro, com outro. Às vezes, tudo que eu queria era nunca ter te conhecido. Nunca ter cruzado com teus olhos baixos e tua maquiagem gótica, teu instinto suicida, tua submissão sexual e tua ingenuidade afetiva.
Não quero mais saber tanto sobre ti! Não me interessa mais tua mãe ter atrasado um ano da tua entrada na escola, querendo que tu acompanhasse teu irmão. Não me interessa sobre tua lista imensa de namorados mais velhos, nem sobre o fato de tu tê-los repudiados por vezes e, no fim, ficado com eles. Não me interessa a vida dupla que tu viveu. Não me interessa se tu acha sexy ficar só de saia, nem sobre o que tu faz sem vontade só pra ver a "nossa" cara.
Eu te disse já, e continuo dizendo: tu é nojenta, asquerosa e burra! E eu, um estúpido, ciumento, apaixonado, que só queria que cada coisa que tu me contou acontecesse entre nós dois. Porque, me diz, porque?, tu não podia ter ficado no teu mundinho, isolada da realidade, sofrendo da tua depressão e cortando teus pulsos? Porque tinha que ter cruzado teu caminho com o meu?, te aproximado, me procurado, me buscado, me levado para tua inexistência de treva, desgosto e desilusão? Porque me aceitaste de volta só para me dar mais uma prova do teu universo?, porque nem com a distância do raio do mundo nos separando, tua influencia me foi forte a ponto de eu te buscar, te procurar, te encontrar, e me perder, me foder novamente nos braços do inferno da tua essência que não me permite viver, existir ou ao menos empurrar com a barriga um dia de cada vez sem pensar por um segundo ao menos em ti.
Eu vivo assim, como um zumbi procurando momentos de afeto quiméricos que não existem sem ti... quem não existem sem a imagem, tão utópica quanto, que fiz de ti. Te imagino para mim: os cabelos negros sedosos contra meu rosto; o cheiro tão próprio teu, extraído diretamente do teu pescoço; o toque quente da tua boca contra minha têmpora; a pressão dos teus braços, das tuas mãos, contra minhas costelas, minhas costas.
Foi assim que eu vi o amor, e ainda o vejo. Não era, e ainda não é de verdade. Mas foi bom, sempre. E foi horrível. Foi feliz, e doloroso. Foi os dois extremos de tudo. Agora não é mais. É apenas um lado. O ruim. O medo, a incerteza, a insegurança, a vontade inalcançável, o sonho irrealizável. E a vontade absurda de morrer para não sentir mais esse músculo inútil pulsando sem que tu possa sentir, sem que tu possa ouvir, já que ele pulsa por ti, mas nunca para ti. A vontade imensa de morrer para que essa gosma aquosa não mais veja a tua imagem toda vez que fecho os olhos, para que não mais crie sonhos contigo enquanto durmo, para que não me traga lembranças da tua voz e do teu sorriso.
Mas o que eu vejo não existe, o que eu quero não existe, o que eu lembro não existiu. O mundo que eu criei é resultado de uma esquizofrenia, uma doença mental que me consome e desfaz a minha saúde física, uma doença cardíaca que me destrói, me desfaz, me rasga por dentro em picos de falsa adrenalina e falsa endorfina, que me dói, que sangra e me comprime contra uma realidade que só magoa por não ser a realidade que eu quero. Ou apenas por ser, de fato, realidade.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Um Abraço, um Beijo e Meia-dúzia de Palavras Soltas

Sabe, eu ainda sinto a tua falta. E nós não nos falamos à quanto tempo? Três?!, seis?!, quinze anos?! Já meio que perdi a conta; o tempo parece que já não passa: é como se eu tivesse quinze/dezesseis anos ainda, e que só hoje eu não te vi, só hoje não nos falamos, que amanhã conversaremos como fazemos todos os dias quase sem exceção.
Mas não é assim, não é?! Não nos falamos ontem e não nos falaremos amanhã. Então porque, será que tu saberia me explicar?, porque eu simplesmente não consigo esquecer? Não consigo deixar para trás, no passado, como talvez tu tenha feito? Porque eu ainda penso tanto em ti, todo o dia, toda a noite, exatamente como pensava naquela época?!
Daquela época, eu só tenho meu allstar preto de cano alto. Minhas roupas já não são mais as mesmas. Meu rosto também não. Meu cabelo, então, nem se fala... mas eu tenho deixado ele crescer só porque tu gosta. Será que tu ainda tem aquele cachorrinho – como era o nome mesmo? Tobbie? Tuddy? E o teu cabelão comprido e preto?
Tá, eu sei que tu queria que o Vaticano fosse explodido por uma bomba de antimatéria, mas é inevitável: eu rezo por ti toda a noite, e desejo que os anjos te protejam, já que eu não posso. Sabe, eu me pergunto se tu ainda acha que eu te odeio, se tu acha que eu realmente sinto nojo de ti... Na verdade, eu tinha ciúmes. Muito! Te queria só pra mim, então me fazia de bobo e reclamava de cada passo que tu dava.
Tu me disse que tinha aprendido muito comigo, que eu tinha te salvado do suicídio. Mas seria possível? Eu era tão bobo, tão ingênuo, tão imaturo. Tão... tão eu... Hoje eu trabalho, e, bom, ainda estudo. Acho que essas coisas não vão mudar tão cedo: acho que vou trabalhar e estudar a vida toda. Só espero que, logo, eu possa estar ganhando para estudar. Mas um assunto de cada vez; não quero falar de mim, queria mesmo era saber de ti. Minha vida é um saco desde que tu foi embora, então não tem muito o que ser dito.
Queria um abraço teu, e ouvir de novo a tua voz. Será possível um dia? Duvido muito, depois de todo esse tempo... Tu já deve estar morando fora do país, do outro lado do mundo: uma vida bem estruturada, família e carreira. Eu não tenho nada: para indigente falta pouco. Pior que é verdade, eu trabalho para estudar e estudo para trabalhar. Um ciclo vicioso inquebrável e indestrutível. Só tenho meu trabalho, meu curso e meu allstar surrado. E muita, muita saudade.
Algumas vezes me odeio por ter feito a escolha errada. Outras vezes quero te crer que a escolha foi tua. Às vezes acho que nunca tivemos escolhas de nada. Nunca podemos escolher qualquer coisa diferente do que, no geral, estamos vivendo. Camas separadas, quartos separados, vidas separadas. Será que tu ainda pensa em mim, Guria? Te lembra como eu te chamava? Te pergunta o que teria acontecido se tivéssemos nos unido, e não dividido?
Eu ainda lembro de ti toda a vez que escuto Nando Reis. E quase morro de rir quando ouço Fresno, porque eu lembro de ti, no Pop Rock – era esse o nome?! - gritando enlouquecida, chamando o vocalista de gostoso. Eu ainda lembro de ti me explicando o que querem dizer as letras do Skank. É inevitável o sorriso quando lembro das tuas amigas dizendo que tu tinha que gostar das mesmas coisas que eu ouvia.
Poxa, eu lembro de ti até quando eu espirro. Por falar nisso, como vai a tireoide? De qualquer forma, acho que sempre que eu mostrar a língua vou te ouvir dizendo que quem mostra a língua pode beijar. E vou ser obrigado a rir de como tu é boba. Ou era... Eu continuo bobo como outrora. E tu?
Eu tenho medo, sabe, a cada dia que passa. Tenho medo que algo te aconteça e eu nunca fique sabendo. Aff, tenho medo que tu morra e eu continue te esperando voltar pra mim. Tenho medo dessa eterna solidão, sem nunca ter sido feliz ao teu lado e, um belo dia, nunca mais ter realmente esta chance. Não tenho medo de morrer sozinho, desde que tu saiba o quanto tu significou pra mim. Tenho medo é de que tu morra sem sabê-lo.
Eu só queria saber como tu tá. Precisava disso para dormir tranquilo. Queria notícias, vez ou outra... Mas duvido que seja possível. Duvido...

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Esquizofrenia - Capítulo 2 - Parte 3

Alguém bateu na porta. Landau levantou do chão. O padre, sentado à uma poltrona perto da entrada do escritório, apenas olhou em direção às batidas.
- Não vai abrir? - indagou. Tinha ouvido a porta ranger quando se abriu para ele entrar, e ainda não ouvira o rangido novamente.
- Sim, senhor. Por favor, aguarde aqui.
“Claro”, dissera o padre. Landau abriu a porta e saiu. Lisa lhe lançava um olhar assustado e, ao mesmo tempo, ameaçador. O chefe da segurança lhe abraçava pela cintura, amparando seu peso, enquanto ela segurava um braço quebrado.
- Como...? O que...?
- Jonathan! Rômulo o ajudou a fugir! - a voz de Lisa soava como uma gargalhada histérica. Na verdade, Landau se esforçou para negar o sorriso que via no rosto da enfermeira.
O médico pareceu primeiro mais confuso, depois com raiva. Quando Lisa esperou que ele explodisse aos gritos, Landau recobrou o controle e disse calmamente:
- Lisa, vá engessar esse braço. E você – o indicador quase encostando no rosto do chefe de segurança –, pegue-o. Agora!
Nenhum dos dois discutiu. Saíram mancando, a enfermeira jogando seu peso contra o corpo do homem, com uma luxação inchando num calcanhar.
O médico abriu a porta e olhou para dentro. “Vamos dar uma volta, padre?”

*

Johnny caminhava devagar. Por impulso, quase instinto, havia saído correndo do quarto, enquanto mal registrava o rosto apavorado das pessoas à sua volta. Entretanto, de fato, não poderia afirmar que tinha alguém ao redor. Era capaz de vê-las quando passa por elas, mas não enquanto se aproximava. À sua frente havia apenas um corredor sujo e mal iluminado; aos lados, como fantasmas perceptíveis apenas com a periferia da visão, homens e mulheres, uns de uniforme branco, outros com uma espécie de roupão azulado, em um corredor limpo de paredes brancas.
Logo, Jonathan estava cansado demais, fraco, para continuar correndo. Seu abdômen doía e os pulmões ardiam. Seus joelhos começaram a falhar e os músculos das pernas à sofrer rápidos espasmos. Seu corpo obrigava-o a parar e a mente já não conseguia conceber um sentido para continuar. Estava confuso, a mente fervilhando com... um nada?, um vazio? O que era aquilo tudo? O que estava acontecendo? Onde estava? Quem era ele próprio?
Nada parecia fazer sentido. Do pouco que conseguiu reunir, não tinha praticamente resposta alguma: lembrava ter cerca de 12 anos – entretanto, o espelho mostrara alguém de quase 30 –, estava em um – estranho – hospital e estava fugindo. Porque estava no hospital, o que acontecera em “seu” quarto e do que fugia, não tinha certeza. Sua cabeça fervilhava ao pensar na brecha de dez ou quinze anos, desde a idade que lembrava ter para a que realmente tinha. Lembrava também que seu nome era Jonathan Blake, e que era chamado de Johnny... mas por quem, não conseguia recordar-se.
Pela reação do segurança, a única coisa que podia supor é que o homem tentara ajudá-lo, de alguma forma. Mas pensar em porque e pelo que aquele estranho tentara lhe ajudar...
Sem que percebesse, não havia mais ninguém em sua visão periférica. Onde sua visão alcançava, tudo que havia era um corredor sujo e mal iluminado. Poucas lâmpadas estava queimadas, algumas piscavam e outras pendiam presas apenas pelos fios elétricos, e a iluminação precária era tão que era quase capaz de esconder o deplorável estado de abandono do hospital.
As paredes desbotadas, descascadas e mofadas mostravam, em muitos pontos, seus metálicos esqueletos estruturais e suas veias e artérias de canos enferrujados. O chão era pontilhado de manchas grandes e pequenos respingos de sangue seco e bolorento. O cheiro forte de umidade e mofo tornava o ar velho e pesado, como se portas e janelas estivessem trancadas há anos. O teto respondia aos passos cumprimentando-o com uma chuva poeirenta de concreto, e Johnny não fazia ideia do porque, justamente ele, fora preso em um lugar como aquele.
Estava sozinho no escuro, com o estômago embrulhando aquela estranha refeição – que parecia a única depois de muito, muito tempo. Havia dobrado umas duas esquinas e avançado por três longos corredores, ao todo. Acabara de chegar ao saguão central.
Aproximou-se do balcão, quase sem perceber, e escorou-se nele. Na parede ao seu lado estava um mural com avisos comuns: horários de visitação, “proibido fumar”, “faça silêncio”; e do lado deste, um mapa do andar. Jonathan percebeu que, no mapa, havia a frase “você está aqui”, mas não o local marcado. Aquilo parecia com as plantas baixas que fizera a escola, como uma lembrança perdida.
“Ala Psiquiátrica” e “Hospital Saint Matthew” estavam escritos no topo do mapa, acompanhado de um emblema estranho – algo como um livro e uma balança – no canto superior esquerdo. O andar era composto por seis corredores principais, chamados de “milhas” e da cor correspondente; e quatro corredores menores que recortavam ao meio, em ângulos retos, as quatro “ilhas” de quartos e salas formadas pelas milhas, mas eram todos brancos no mapa e sem nomes. Tentando retraçar o caminho que fizera, acreditou que seu quarto ficava na “milha verde”. A recepção, onde estava, ficava no centro do andar, exatamente onde as milhas azul e lilás se encontravam.
Incerto de como sair dali – já que as escadas estavam nos extremos da construção e ele, Jonathan, bem no meio –, olhou em volta com um suspiro. A recepção era um grande balcão redondo no centro do hall, que tinha um elevador em cada um de seus cantos. A abertura dos elevadores eram mais largas do que altas. As portas abriram, uma a uma, enquanto Johnny as observava, mas elevadores não estava ali – pareciam negar-se a descer, provocando um estalar alto – dando aos quatro buracos a angustiante aparência de bocas escancaradas e famintas, que engoliam em seco à espera.
A luz bruxuleou, as lâmpadas que ainda funcionavam piscaram uma última vez, e tudo ficou escuro. Sua visão percebeu um vulto passando por um dos corredores, e Jonathan piscou forte e várias vezes – inconsciente de que tentava obrigar seus olhos à se acostumarem com o escuro. Ouviu um arrastar de pés seguido de um baque surdo – um frio úmido lhe subiu pela coluna, da bacia até a base do crânio –, e, virando-se, ouviu o gutural som reconhecível da ânsia trancando a gargante e o jorro saindo pela boca e cobrindo o chão.
Afastou, sem perceber, os pés da poça que se formava, se aproximando de costas para a boca escancarada de um dos elevadores. Entre ele e o balcão estava uma enfermeira ajoelhada. A luz era fraca, mas não o suficiente para impedí-lo de reconhecer o sangue se espalhando pelo piso. Ela vomitava incessantemente: o som e o cheiro eram terrivelmente nauseantes, e Johnny teve de trancar a respiração para não vomitar também.
Deu passos hesitantes em direção à mulher caída, ao mesmo tempo desejoso e enojado demais para ajudá-la. Ela parara com os jorros momentos antes dele fazer uma pergunta que sabia ser estúpida, mas que lhe saíra mais rápido que pudesse conter: “moça, tudo bem?”. Foi quando seus olhares se cruzaram que tudo começou.
A enfermeira abriu novamente a boca cheia de sangue, que escorreu pelo nada limpo uniforme. Os olhos tornavam-se vermelhos enquanto deixavam escorrer lágrimas tão vermelhas quanto. O lábio superior da mulher se rasgou com um som doloroso, forçando seu rosto a amplificar sua expressão de desespero.
Ela levou a mão à boca, como se quisesse tocar o lábio; quando baixou-a, a palma estava cheia de dentes com raízes sanguinolentas. “Me ajude”, ela disse, a voz distorcendo conforme o rasgo vertical aumentava, subia pelo nariz, e seu olhar perdeu-se, tornou-se vago, vidrado. Os olhos esbugalharam mais e mais até saltarem das órbitas, balançaram presos pelos nervos e veias, então caíram, um, entre os dentes, na palma da mão ainda estendida, o outro se espatifou no chão como uma fruta podre.
A fenda subiu por entre os olhos, rasgando o nariz. A boca retorceu-se em um último ato humano. Os ossos se separaram na direção do rasgo, forçando a cabeça a se abrir em uma imensa boca vertical. Com o cérebro à mostra, os ossos se realinhavam, formando estranhos dentes grandes e pontiagudos. A pele se repuxava, transformando o nariz, os lábios e as pálpebras em massas amorfas, cobrindo as narinas, as orbitas oculares e a boca humana. A epiderme tornou-se roxa, apodrecendo levemente, perdendo pedaços e deixando feridas purulentas.
O cheio era horrível. Seu corpo pendeu para trás, e Jonathan recuou involuntariamente até a porta de um dos elevadores. O carro não havia descido, talvez nunca mais descesse... não para ele. Desequilibrou-se quando seu pé escorregou no degrau; viu a enfermeira esticar os braços, as mãos de unhas negras em sua direção. Ela avançou, rápido demais para seus passos cambaleantes. “Cuida...”, pareceu gemer, e Johnny, caindo para trás, teve medo que aquilo tentasse lhe ajudar. Jogou o peso para frente, se jogando ao chão. Rolou para o lado e saiu correndo em quatro pés.
Não parou para se levantar. Provável que só tenha conseguido pôr-se ereto por medo de ser alcançado. Não pensou quando foi refazendo o caminho de volta para seu quarto. Não faria muita diferença, de qualquer forma: havia uma escada próxima. Quando fizera o caminho até a recepção, não havia ninguém; na volta, também não deveria haver alguém...
… mas havia.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Roland - Parte 4

O gaucho mateava em silêncio, observando a pequena vila: haviam apenas quatro casas largas, mas não compridas. Era estranho estar novamente entre pessoas. Observava, saboreando o amargo com calma, para os três piás conversando. Os dois que haviam fugido não acreditavam que o outro voltara vivo, enquanto este ria-se dizendo que obrigara ao homem a trazê-lo.
Mesmo duvidando (cada vez menos), os maiores ouviam o pequeno com atenção redobrada, sobressaltando-se sempre que o gurizinho erguia as mãos, falava mais alto ou dava uma ênfase maior ao que dizia. Certo era que a história encompridava-se a cada vez que era contada. O homem não se importava como sua imagem ficaria entre as crias daquele fim de mundo, mas era divertido pensar em que, talvez, aquele piazito ganhasse certa “fama” de herói.
Quando a cuia roncou, com um suspiro de pesar, entregou-a ao preto velho ao seu lado.
- Mas tu ainda não disse teu nome – disse o velho, enquanto servia a água quente.
- Roland, velho pai.
- Pois escuite, Roland – e sorveu o chimarrão – tento ensinar, mas naum aprendem, que é errado roubar. Pero, 'stou feliz que tenham te achado.
- Mas... velho pai, não fiz mais que minha obrigação...
- Hasta porque querias teus pertences de vorta. Eu vejo... eu vejo... Pero, escuite. E escuite bem. Tu atravessou este mato como, fio?
O menino, transformado, guiara Roland pelo caminho todo, da praia até a vila. Estavam presos um ao outro por dois laços: desta forma, se o rato tentasse se desvincilhar, ou um laço se apertaria com o movimento, ou o homem poderia estreitar o outro puxando o seu lado da corda. O guri não tinha como fugir... como se quisesse.
Nem bem dez minutos dentro da floresta, o menino guinchou e parou. Roland já tinha percebido, incluso sacado o facão. Um sanguanel, carmim como o sangue, parou e olhou o homem nos olhos, e então continuou por entre as moitas e árvores. O rato guinchou de pavor, ao ver a pequenita criatura, e correu para os braços do gaucho, que ria.
- Guiado pelo guri, velho pai.
- E guarnecido pelos 'spritos do mato, fio. Eu tô ruim dos zóio, má naum do coração. A muito que eles naum deixam ninguém passar. Meus guri se arriscam pra roubar cousa ou outra, mas eu acho que os 'spritos não iam tirá desse pobre véio o poco que le resta, nõ'á?! Pois escuite, fio, o Patrão Véio me disse, mais d'uma veiz, que um hôme bom viria... e que esse hôme bom nos guardaria e protegeria. Que esse hôme bom teria a alma farrapa e que naum se assustaria com a peleia.
- Velho pai, eu não entendo...
- Calma. Tu descansa hoje. Por la mañana... - entregou a cuia servida à Roland, levantou-se e entrou em sua tapera – Por la mañana – e fechou a porta
A manhã não chegou à tempo...
Enquanto tomava o último mate, pouco a pouco, alguns animais se aproximavam da pequena aldeia. Eram quatorze: uma coruja, uma mulita, quatro cuscos, duas lebres, dois bugios, três tatus, um cavalo. Com os guris no meio, os que viravam rato, eram dezessete. Com o velho pai, dezoito. Isso já era o suficiente para deixar Roland receoso. Mas, contando com o próprio Roland, eles eram 19. Sentiu o corpo estremecer involuntariamente, e forçou-se para impedir a reação. Levantou-se, a cuia ainda na mão.
- Noite! – e esperou que se transformassem.
Desconfiados, a bicharada recuou, parecendo hesitar; à exceção da coruja, que voou do galho em que sentara para observar Roland, aproximou-se batendo as asas e, representando pousar no chão, foi crescendo e crescendo, as penas sumindo, as garras virando pés. Quando caiu, leve, à frente do gaucho, era um moço jovem, bonito até, e com um olhar forte, perspicaz e sábio. O olhar de uma coruja. Tudo que Roland via nos olhos do menino-coruja, era o que este via nos olhos daquele: o olhar de um matador.
- O senhor tem os olhos de um falcão.
- Acho que, vindo de ti, é um elogio – o homem tentou sorrir, mas parecia impossível sorrir para alguém tão capaz de colher uma vida, quando se encontra em certa desvantagem (mais moral do que qualquer outra).
- O senhor é o dezenove. O senhor é o Homem Bom – nenhuma foi pergunta. Roland não gostou delas.
- Eu sou apenas um viajante que, por azar, tropiquei com esses meninos.
- Meus irmãos lhe roubaram. O senhor veio tomar o que lhe é seu. Também nos roubam. Também queremos tomar o que é nosso – Roland teria dito que era muito justo, mas foi interrompido – O senhor vai nos ajudar.
- Creio não poder fazê-lo – o homem havia gostado do velho e até se sentido com certa obrigação de ajudá-lo, mas o tom daquele corujito não lhe agradava.
- O senhor não tem opção. Ou nos ajuda, ou não sai daqui.
Roland levou a mão ao facão. Eram apenas crianças e o velho certamente precisava deles para viver, mais do que eles precisavam do velho, mas não baixaria a crista para um piá qualquer. Ensinaria à coruja algumas lições com estouros de facão, se fosse necessário. Daria de estouro nos dezoito, se fosse preciso para sair dali. Não aceitaria uma ameaça de um piá metido à besta... ainda mais de um piá com aquela frieza no olhar.
Mas Roland não chegou a desembainhar o facão. Um vento frio varreu a clareira, vindo e indo de lugar nenhum, subindo pelas costas do homem e lhe agarrando a nuca. A terra explodiu por todos os lados, como se projéteis invisíveis estivessem alvejando barris de pólvora enterrados.
Não havia tempo para discussão. O gaucho sentia uma presença pesada por todo o lugar, mas os sétimos filhos seriam capazes de farejá-la. “Protejam o velho!”, gritou para alguns; “Comigo!” gritou para outros. Não abrira a boca uma única vez, o barulho das explosões impediria qualquer comunicação verbal.
Correra para fora da clareira. Sem se virar, soube que um grande grupo se reunia em torno da cabana do velho. O protegeriam, o levariam para longe do ataque. Roland corria sem olhar para trás, certo de que os poucos que chamara consigo o acompanhariam, o guiariam até ela.
Os animais emparelharam com ele, o ultrapassaram. O homem não os acompanharia tão fácil, não esperava que fossem tão afobados. Porém, o cavalo diminuía a velocidade, convidando-o a subir. O grupo avançara rápido, e a pressão na cabeça de Roland aumentava. Seus olhos começaram a lacrimejar, e seus ouvidos pulsavam como se fossem explodir. O ar queimava suas narinas e parecia solidificar em seus pulmões. Só ele parecia sentir os efeitos daquela emanação, e sabia bem o porque.
Onde tu estás?
Vá embora!
Preciso ter contigo!
Vá embora, gaucho, ou não me apiedarei de ti! Vá!
Sabes que não poderá me enfrentar. Onde estás?
Vá! Leva essa marca contigo! Tu tá condenado com ela! Leva ela daqui e vai!
Velha mãe, por favor.
Não confabularei contigo! Não terei contigo! Vá!
Se não?!
Ela não respondera; não com palavras. A visão de Roland estava embaçada, e ele teve a sensação de que as árvores haviam se retorcido, se mexido, que as raízes haviam saído da terra, que os galhos haviam descido. Era tudo uma alucinação, ele tinha certeza. A resposta dela era deixá-lo louco, pressioná-lo até fazê-lo perder a coragem e desistir de sua busca final.
O cavalo relinchou e empinou. O bugio gritou de dor. O cachorro rosnou alto e latiu. A coruja piava constantemente. O homem, que cavalgava em pelo, escorregou das costas do bagual. Encontrara o solo com uma pancada forte. O mundo inconstante em que Roland vivera os últimos minutos, desaparecia numa escuridão indolor.

terça-feira, 13 de março de 2012

Asas Quebradas - Episódio 2

Havia amanhecido à pouco tempo. Mikail descruzou as pernas e esticou os joelhos. Com um suspiro, abriu os olhos e observou calmamente a poeira que dançava calmamente no raios de sol que entravam pelas frestas da janela. Levantou-se e alongou-se até ouvir cada junta estalar. Sentia-se bem: há muito não era capaz de passar uma noite tão tranquila, sem qualquer barulho que lhe despertasse. Quando desceu, encontrou os velhos já atrás do balcão e o espadachim à uma mesa.
- Bom dia! – disse o pequeno – Me daria a honra de uma companhia no desejum? Eu pago.
- Claro, porque não?
- Não. É por conta da casa. – interrompeu o velho – Vocês fizeram um imenso favor para toda a cidade. Algo que nunca poderemos pagar como deveríamos. Aqueles nos roubavam a anos, sem que ninguém pudesse impedi-los – e sumiu pela porta da cozinha, resmungando baixo.
Mikail não se sentiu lisonjeado, mas o espadachim sorria por detrás do chapéu de aba larga. Agora, pensando nisso, Mikail percebeu que seu companheiro de mesa usava roupas próxima ao dos povos bárbaros, mas de alguma forma estranha aos olhos. Observando-o com calma, avistou as botas quase do mesmo tamanho das suas.
- Achei que vocês tivessem desaparecido junto com o Império – disse Mikail
O robit sorriu e retirou o chapéu. O rosto era marcado por duas feias cicatrizes.
- Acho que vocês sofreram mais – “Tu não sabe o quanto”, pensou Mikail – Sou Italus.
- Mikail.
- Fique sabendo que és viajante também. Estás indo para onde?
- Não sei – respondeu, as costas começando a arder –, só caminhar para mim está bom.
- Parece que estás fugindo – e riu alto
- Acho que só não tenho nada que me prenda a qualquer lugar... – respondeu Mikail, sentindo as costas como se lavadas por água fervente. O rumo daquela conversa não lhe agradava.
- É, sei bem como é isto. Tudo o que tinha se foi com o Império. Agora, eu vivo de acordo com a minha lâmina, e isto me serve – Italus tinha um olhar perdido enquanto falava, Mikail se perguntou quantas lembranças aquele olhar escondia e, de repente, suas costas não incomodavam mais.
A velha senhora chegou à mesa, sorrindo, com uma bandeja quase grande demais para ela. Serviu os dois, que agradeciam a cada artigo que era posto à mesa, até que ela terminou e saiu corada. Passou pelo marido dando risadinhas e sussurrando algo sobre a educação dos homens.
Os dois comeram não tão em silêncio quanto Mikail gostaria. Para o andarilho, as refeições eram sagradas, um dos momentos diários de reflexão e introspecção... e para isto era necessário silêncio. Algo que certamente não havia, com Italus falando sem parar. Por outro lado, Mikail fora obrigado a reconhecer que ouvir o robit falando lhe agradava; era bom conhecer com quem se dividia a refeição.
Italus contava sobre a cidade onde nascera, sobre como fora sua educação nas mãos dos pedagogos aqueus, como fora seu treinamento com a espada – sozinho e em fila, mais ofensivo e mais defensivo. Dialogou com a – gigantesca em suas mãos – caneca de suco de uva erguida à meio caminho da boca sobre como sua família se endividara e que fora escravizado para pagar a dívida no lugar de seu pai, já velho e doente – mas ainda com punho forte o suficiente para manter seu patriarcado. Contou, com a boca cheia de pão, como aprendeu as regras dos coliseus e em como ganhara fama o suficiente para, mesmo depois de ter sua dívida quitada, permaneceu nas arenas até a Invasão. E, por fim, com lágrimas, reviveu cada momento da batalha final do Império e sua inevitável derrota.
O coração de Mikail estava com o de Italus até o final da história, que fora neutra a maior parte do tempo. Não houveram situações cômicas como há nas histórias dos velhos. A única emoção presente foi a tristeza, no fim de seu relato, mas não por saudosismo do tempo que se fora, mas pela tristeza acarretada pela morte de todos seus entes queridos e amigos. Isto, por óbvio, não saíra da boca de Italus, mas Mikail o soubera de qualquer forma. Era em seus mortos que Italus pensava enquanto falava sobre a Queda... e fora por eles que Mikail chorara discretamente.
O andarilho não contou sua história. O robit não perguntou. Depois dos longos anos resumidos em poucos minutos, ambos terminaram o dejejum em um silêncio desagradável, incômodo. Era desagradável os sentimentos desprendidos por Italus, e era pior ainda saber que qualquer outro não os teria captado.
Sentados, em silêncio, Mikail se perguntava sobre os seus laços, sobre tudo o que lhe fora tirado e que ele já não mais fazia ideia... se é que um dia fizera. Se perguntava como seria sua vida hoje, se nada daquilo tivesse acontecido; se o destino teria sido diferente, ou se tudo seria exatamente igual. Se ele estaria sozinho, mesmo cercado de parentes, ou se estaria – de qualquer forma – na estrada, fugindo, de um jeito ou de outro, de seus consanguíneos e/ou conterrâneos.
Pensar no destino que lhe fora negado não era um alento, ao contrário, era apenas mais uma forma de autoflagelo tão comum contra si mesmo, e ao mesmo tempo tão inevitável... Tão... agradável... pois era a única maneira que tinha de forçar sua mente a lembrar-se dos rostos das pessoas que lhe cercavam, que lhe cuidavam. Lembrar de imagens que o tempo insistia, cada dia com maior intensidade, a apagar, a dissipar, desfazer.
Tempo... aquele velho titã despedaçado e aprisionado no mais profundo limbo e que ainda assim era forte o suficiente para desfazer a vida dos homens e das mulheres como se fossem todos simples brinquedos, insignificantes brinquedos. Tempo... ah!, como Mikail o odiava...
A velha veio com seus passos incertos e hesitantes recolher a louça, e Mikail levantou-se rápido para ajudá-la. Ela agradeceu dizendo que não precisava se incomodar, mas o andarilho insistiu e, acompanhado do robit, seguiram a velha que nada levou nas mãos. Depois de ter o agradecimento tímido da velha, era inadiavelmente hora de ir. De novo, o Tempo lhe empurrando para onde apenas ele próprio sabia para onde.
À porta, o casal de velhos lhe agradeceram por tudo, e Mikail desejava que o resto da cidade ainda dormisse até que estivesse bem longe dali. Com seus poucos pertences às costas, o andarilho apertou a mão do robit e partiram, um para... o mesmo lado que o outro?!
Olharam-se e riram, Mikail sentindo uma graça a tempos não sentia.
- À floresta?!
- À floresta.
- Então nos faremos companhia por mais algum tempo, meu caro humano?
- Creio que não me importaria.
- Quem não quer a companhia de um petisco em uma floresta de horrores gigantescos, não?!
E Mikail sentiu dissipar-se um pouco de toda aquela angustia que circundava seu coração.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Abraço

Ela me olhou e sorriu. Diminuiu a distância entre nós com dois passos... e me abraçou.
Por um momento não tive qualquer reação, qualquer pensamento; minha mente se perdeu no susto e meu sorriso amoleceu, inconsistente perante o contato, desnecessário devido a proximidade. Vi o rosto dela sumindo pela direita do meu, afundando em meu ombro esquerdo: poderia jurar, hoje, que sentia a respiração dela contra o meu pescoço, tentando roubar qualquer aroma meu agradável à seu olfato... mas era eu que tentava aspirá-la para dentro de meus pulmões o mais inaudível e insensível possível a ela.
O coração pulsava cada vez mais forte, desde de parara quando a vi, de repente, trocando aquele “primeiro” olhar, aquele “primeiro” sorriso, e eu me esforçava para que ela não o sentisse. O susto se fora tão rápido quanto viera através de um ato tão corriqueiro, mas meus braços se mantiveram imóveis ao lado do meu corpo. Tudo que eu queria era envolver sua cintura, mas não me mexi...
Sentia seu rosto contra meu ombro e seus braços me puxando mais e mais para junto dela por vontade própria. Meus olhos quiseram se encher de lágrimas e um nó se formou em minha garganta. Poderia jurar que ela me apertou mais forte contra seu corpo quando meu rosto afundou em seus cabelos, e foi essa sensação – talvez mentirosa, que talvez eu tenha criado porque esperava, porque queria que fosse isso que tivesse acontecido – que fez meus braços se erguerem para envolvê-la.
“Seu puto”, ela disse, quando nos afastamos e nos olhamos, para depois nos abraçarmos novamente. Poderia jurar que ela segurava o choro, mas talvez fosse mais um engano, talvez apenas eu sentisse vontade de chorar. Ou talvez, só talvez, minha mente estivesse tão sóbria, tão séria e sem qualquer imaginação... talvez, só talvez, não fosse só a minha, mas a nossa verdade.
O abraço pareceu durar a eternidade, e tudo que eu queria era que não acabasse. Meus lábios adormeceram, esperando pela pele dela... ... Nunca pensei que um abraço pudesse ser tão bom, tão aconchegante; que através de um abraço fosse possível sentir-se finalmente em casa; que o mundo finalmente fizesse sentido. Nunca pensei que ela me abraçaria com vontade, numa vã tentativa de afogar uma saudade que não deveria existir.
Então nos afastamos. O sorriso voltou aos nossos rostos: o dela, lindo, o meu, incerto e educado. Queria puxá-la de volta, morrer naquele abraço para nunca mais sentir seu corpo descolando do meu, para nunca mais sentir o ar frio tocando meu peito, meu abdômen, o lado de dentro dos meus braços. Queria beijar seu rosto todo: as maçãs do rosto, o nariz, a testa, os lábios. Queria que o tempo parasse naquele instante, que eu pudesse abraçá-la de novo e tudo ficássemos assim para sempre. Queria qualquer eternidade, qualquer porção de verdade que me permitisse ter certeza de que ela sentia o mesmo que eu.
Ela recuou os dois passos, ampliou um sorriso – que talvez tenha tremido, vacilado – e saiu pela porta. Quis esticar o braço, chamá-la, puxá-la de volta. Fiquei quieto, vendo-a se afastar, antes de ter forças para impulsionar um corpo com o peito vazio para frente e vê-la levar um coração sem ter ideia de que o tinha consigo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Quarto Andar - Lado B

Este conto é, de certa forma, "baseado" no conto Quarto Andar. O que gera duas vias: a) é um conto totalmente a parte, apenas com a mesma abordagem; ou b) é um complemento para um "buraco", uma melhor explicação para a história que poderia parecer incompleto ou vago por causa do salto no tempo corrente do conto. Na primeira hipótese, nada muda. Na segunda, temos duas vias à seguir: b.a) o personagem cara é um personagem que não aparece no primeiro conto; b.b) o personagem ele do primeiro conto é, na primeira parte, o cara desta história, e na segunda - depois do desaparecimento, o que briga na escada - é o ele desta história. Nesta primeira hipótese, nada muda. Na segunda... bom... talvez a perspectiva do primeiro conto mude totalmente...
Eu não me decidi. E tu, depois que leres os dois, por quais opções optarias?

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“Tirei o chapéu pra ti, cara! Bah, tirei mesmo o chapéu pra ti!”
Quem poderia imaginar que isso seria uma ameaça?
O problema é que foi...
Ele trabalhava em um setor, mas era apaixonado por uma guria que trabalhava em outro. Constantemente enviava bilhetinhos pelos colegas dela, dos quais ela nunca respondeu nem um. Tentou todo o tipo de aproximação, mas ela sempre lhe afastou: nunca quis sair para beber, sempre fora ríspida em todas as respostas dadas. Até atravessar a rua quando viu que eles se cruzariam na calçada, ela atravessou.
Por outro lado, o cara em questão se aproximou muito dela. Andavam de um lado para o outro sempre aos cochichos e sorrisos. Ele, assim como todos nós, entendeu que os dois estavam de flerte.
O engraçado é que aquilo seria totalmente – ou nem tanto assim – impossível. O cara era gay, mas ninguém sabia. Por toda a vida, o cara escondeu ao máximo de sua capacidade: como todo o segredo, este fez pressão até ser revelado. Ele e ela eram amigos – realmente mais que colegas – e logo a confiança e a intimidade necessárias para que ele contasse se fizeram.
Logo, estavam de conversinhas pelos cantos, falando sobre os meninos dos outros setores. Por algum motivo, existia aquele estranho “pudor” em falar sobre nós, do setor deles. Mas andavam sempre juntos, durante o tempo todo, falando sobre assuntos ditos femininos, com ele sempre desejando muito mais que fazendo. O problema, o que gerava confusão, era a infeliz mania de esconder quem ele era, de agir sempre como o machão, o comedor.
Um dia, ele teve a certeza que todos nós, sem exceção, tínhamos – a certeza errada que tínhamos. A raiva lhe tomou a face, vermelha como se o sangue fervesse desde o estômago até o cérebro. A frase que proferiu, fria e totalmente calculada, me causou calafrios que ainda hoje sou capaz de sentir... mas que foi totalmente ignorada por ela... e pelo cara.
Dois dias passaram em uma calmaria estranha. Tenho certeza que meus demais colegas que ouviram aquela “saudação” também estavam esperando pelo pior, assim como eu. A questão é que esperávamos que ele quisesse briga, desse uns tapas no cara, ou qualquer coisa assim. O que aconteceu foi pior. Sangrentamente pior. Um belo dia, nenhum dos dois veio trabalhar. Na verdade, nenhum dos três.
A mente do cara despertou de uma única vez; em um momento, vagava pelo limbo da inconsciência, no outro, estava totalmente alerta. Por outro lado, seu corpo parecia não responder à nada. Demorou o que pareceu uma infinidade para perceber que estava vendado e tão bem amarrado à uma cadeira que não era capaz nem mesmo de dar de ombros. Com as mãos presas as costas, logo percebeu que seu acento estava grudado ao chão e até mesmo seus pés estavam presos. Havia panos em sua boca, tão fundo em sua garganta que abafavam qualquer grunhido. Era como estar enterrado vivo, mas em um caixão de proporções relativamente amplas e desconhecidas. Apenas sua respiração demonstrou que estava acordado.
Só percebeu que estava com os ouvidos tampados quando sentiu os imensos e macios protetores de orelhas e, depois, os protetores auriculares serem retirados. Sentiu uma respiração ofegante em sua nuca, contra seus cabelos e um bafo quente em sua orelha quando ouviu uma voz rouca lhe dizer que agora sim eles poderiam continuar.
Fora desvendado, e seu olhar recaiu justo onde ela estava. Amarrada e amordaçada, jogada despretensiosamente em um colchão nu, seus olhos revelavam medo. Ele entrou em seu campo de visão, repetindo incessantemente que agora sim eles poderiam começar. E apenas isso deu certeza de que nenhum mal – pior que ser sequestrada e amarrada – acontecera a ela. Até aquele momento.
Ele ria histérico enquanto desamarrava as mãos dela e as amarrava novamente nas pontas do colchão, e depois com as pernas. Ela lutara com todas as forças, mas ele gargalhava alto e rápido a cada tapa ou arranhão, mas nada parecia surtir qualquer efeito. Logo, ela estava novamente presa, braços e pernas abertas.
Parado entre ela e o cara, ele começa a cantarolar uma música qualquer, intercalando com sua risada insana, e a balançar o corpo para os lados. Em movimentos hesitantes, ele retira toda a roupa numa imitação do que deveria ter sido um strip sensual. Do bolso da calça, antes de abrí-la, tirou um canivete. Com ele, já nu, aproximou-se dela e lhe cortou a roupa.
Ambos nus, o cara, incapaz de desviar o olhar, aperta os olhos. Tenta se concentrar no secume de sua boca, esforçando-se para não ouvir os sons asquerosos que aquele estupro produziria. Fez o que pode, mas não há como se desprender totalmente do mundo físico por mero esforço consciente.
O ato durou mil anos ou mais, os rangidos das molas já gravados eternamente na alma de quem os ouvisse. Ou, logo ele estava à sua frente, rindo. “Eu fiz, viu? Com a minha namorada! Tu não vai roubar ela de mim! Nunca-nunca!”, e gargalhou. Ela chorava por medo, asco e dor; o cara, por pura impotência.
- Tu não viu, né?! – ele mostra o canivete – Pois não devia ter fechado os olhos!
As risadas param, mas a insanidade permanece no sorriso e no olhar dele. O cara chora suas ultimas lágrimas transparentes antes de nunca mais fechar as pálpebras.

Roland - Parte 3

Roland ouviu um guincho. Seu consciente sonolento tentou criar um sonho em torno do barulho, mas seu inconsciente identificou-o como um alerta... Encontrei algo!. Mentalmente, o gaucho acordara e levantara em um único salto. Fisicamente, ele continuava deitado, os olhos fechados (treinados para as pálpebras não tremerem, como costumam tremer enquanto estamos acordados) e a respiração leve.
Os passos não emitiam nenhum som: eram macios demais, totalmente abafados pela areia imóvel dentro da tapera. Entretanto, Roland sentia os movimentos e a respiração da criatura; ela evitava se aproximar do corpo, mas vasculhava com mãos leves, verificando todos os pertences do homem.
Houve um segundo guincho, de longe. O que foi?. A criatura junto do gaucho respondeu. Venham logo!. Com dois gritos. Venham ver!. Todas as guinchadas lembraram muito ao homem o som de roedores, mas aquilo era impossível, já que...
Um segundo entrou e soltou aquele mesmo gritinho que despertou Roland. Era preciso esperar até o último momento. Ele tinha uma cicatriz feia na mão, do indicador até o dedo médio, para lhe lembrar desta pequena regra. Era preciso esperar que todos que tivessem de entrar entrassem e que a emboscada fosse armada por eles para que ele pudesse desarmá-la.
Os dois pareciam juntar as coisas de Roland no centro da tapera quando um terceiro, e último, apareceu. O guincho, dessa vez, mesmo muito excitado, não era de chamado, mas de espanto. Faltava pouco, agora...
Os três reuniram-se em torno do gaucho, guinchando baixo. Certamente discutiam se deviam ou não mexer na mala de garupa usada como travesseiro, pois, com muito cuidado, um deles pegou a cabeça de Roland, enquanto os outros levavam as mãos à bolsa.
O homem ergueu a cabeça no exato momento em que a criatura foi levantar sua cabeça, surpreendendo-os e impedindo qualquer reação. Com o mesmo impulso, jogou o corpo para frente e rolou sobre si, os olhos mirando e as mãos avançando para o facão, ainda não anexado ao monte. Logo estava em pé, armado, de frente à... três ratos??? Não! Roland não conseguia acreditar que...
Numa reação totalmente humana, os três ergueram as patas dianteiras, apoiados apenas nas traseiras, mostrando que estavam totalmente desarmados. O gaucho avançou dois passos, urrando, os braços abertos, a mão livre erguida, o corpo vergando ameaçadoramente contra os enormes ratos, muito maiores que o que comera na ultima noite. A adrenalina fazia o sangue pulsar forte demais nas têmporas para que ele pensassem em caçar. Esperava assustá-los e fazê-los fugir.
Bom, os ratos fugiram... mas não sem antes jogar, com os rabos, arreia em seus olhos. Desviaram por entre suas pernas e pegaram o que puderam com as bocas e caudas do que fora amontoado, enquanto Roland levava as mãos ao rosto, tentando limpar a vista.
O último deles tropeçara no morrinho de objetos, e não havia nem passado da porta quando Roland se virou, os olhos vermelhos e lacrimejando. Correra o máximo que conseguiu, mas pouco havia avançado quando sentiu as mãos do homem lhe levantando do chão. Guinchou por ajuda para os irmãos que se afastavam... e que não voltaram. Se tivesse sorte, eles voltariam para salvá-lo, talvez com o bando todo. Por ora, precisava contar com a bondade de seu “raptor”.
Roland levantou-o até a altura dos olhos, os braços esticados para evitar um possível ataque, depois de sacudí-lo e garantir que havia soltado tudo que tinha na boca e na cauda. Virou-o com ódio, para encará-lo de frente, não sabia bem porque. Mas se arrependeu de tê-lo feito.
O rato tinha lágrimas nos olhos, e o homem foi acompanhando-a rolar pelo focinho que diminuía. Os pelos foram caindo, o rabo encolhendo e as as patas aumentando. Dolorosamente, para quem olhava, os membros se realojaram com um estalo para os lados do tórax e da bacia, enquanto as costas se alongavam.
Se Roland capturara um rato grande, em pouco tempo, o que tinha nas mãos era uma criança de, aproximadamente, nove anos.

MK

Este conto é uma continuação do Lábios da Morte. A ideia era escrever crônicas sobre Os 7, mas não sei se sai...

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Ela atravessou a rua olhando para os lados. Não que aquela hora da noite, com a saída da escola, ela estivesse preocupada com automóveis. Seu olhar vasculhava as sombras, procurando ver algo que seu coração aprendera a esperar. Ele viera acompanhá-la todas as noites, desde o começo do semestre. Nem sempre na mesma hora, nem sempre no mesmo lugar, mas invariavelmente todas as noites.
O coração de Catherine ficava apertado com a proximidade do fim da aula, todos os dias: tinha certeza de que ele não viria, mesmo ele tendo dado a sua palavra e tendo sempre honrado-a. A cada dia, com a expectativa aumentando conforme as horas passavam, ela tinha certeza de que fizera alguma burrada na ultima noite, de que falara alguma besteira, de que ele perdera o interesse nela. O que era pior é que ela nem sabia que tipo de interesse ele tinha por ela. Eles conversavam o caminho todo, sobre tudo... e sobre nada.
Kattie morava a pouco mais de três quilômetros da escola. Era longe o suficiente para que ela pegasse uma lotação, mas era perto o suficiente para que a empresa de transporte público achasse desnecessário um micro-ônibus naquele trecho. Era longe o suficiente para que uma jovem sozinha fosse assaltada – e coisa pior –, mas era perto o suficiente para que eles tivessem que, aparentemente, cortar suas conversas no meio.
Ele não havia aparecido ainda, quando ela cruzou a rua, ladeou meia quadra e virou a esquina. Seu coração pulsava nas têmporas e ela repetia mentalmente que ele não viria. Estava começando a ficar com medo a) por ele, pois poderia ter acontecido alguma coisa grave desde que se viram pela ultima vez; e b) por ela, pois poderia acontecer alguma coisa grave antes que ela conseguisse chegar à segurança de seu lar. Logo à frente, ela precisou atravessar outra rua, olhando para todos os lados, literalmente.
Ela chegou à outra esquina já mentalmente – mas não emocionalmente – conformada. Puxou a bolsa mais contra o próprio corpo, submergiu o que pode nas sobras e acelerou a caminhada. Passos se aproximaram e ela tentou baixar a cabeça, na tentativa instintiva de passar despercebida. Tentou. Alguém segurou firmemente seu queixo e ergueu seu rosto para cima, enquanto parava à sua frente. Seus olhos se enxeram de lágrimas de pavor antes que ela visse quem lhe abordava.
- Tu me assustou – ela disse, com um arrepio. Eles nunca haviam se tocado, não pele com pele, e isso a assustou, a frieza da pele.
- Desculpe – o tom dele era doce, mas não escondia certa frieza – como a de sua pele – que ela acreditava ser apenas impressão dela.
Catherine o perdoou no momento em que o reconheceu, ele não precisava se desculpar.
Eles percorreram o caminho de sempre, conversando as amenidades de sempre. Ela não lembrava direito de como se conheceram, nem se importava muito. Tecnicamente, ele sempre esteve ali para ela, sempre a acompanhou naquelas ruas escuras, sempre a levou para casa, desde o começo do semestre... ou antes? Ela tinha mesmo certeza de que ela o conheceu apenas este ano? Ela podia afirmar, com certeza, que ele não a levava pela mão, da escola até em casa, desde pequena? Também não importava. Nenhum pouco.
À uma quadra de casa, Kattie parou. Eles nunca haviam mudado o trajeto, mas ela também nunca vira o rosto dele direito: a pouca luz dos postes do caminho sempre omitiam, de alguma forma, a face dele. Pouco antes, quando se encontraram naquele dia, eles haviam se tocado pela primeira vez... talvez fosse aquele o dia de muitas primeiras vezes para eles.
Ela atravessou a rua em direção à uma pequena praça. Ele não a seguiu, mas Catherine virou-se e lhe sorriu, convidando-o. Ela já estava sentada em um balanço quando ele “tomou coragem” e a seguiu. Os três postes iluminavam com uma luz forte e branca o centro da praça, transformando as ruas à volta em sombras que aqueles postes não conseguiam dissipar.
A luz banhou seus pés e subiu por suas pernas até lhe revelar por completo... ou quase. Ele vestia-se todo de preto; usava allstars, jeans desbotados e uma camiseta larga e ilustrada com o busto de Darth Vader. Mas quando parou à sua frente, seu rosto estava contra a luz – proposital (não que ela soubesse) e levemente (não que ela percebesse) abaixado – e imerso na sombra. A única coisa exposta era seu sorriso, bonito e malvado... não de safadeza, mas de maldade. E ela sentiu um calafrio com aquela expressão.
- Malkan... – mas ele a interrompeu: sentando-se no balanço ao seu lado, levou o indicador aos lábios dela.
Ele curvou seu corpo, aproximando o rosto – em fim completamente iluminado, e que por si só a fez perder o compasso da respiração – do dela. O olhar de Kattie estremeceu, mas ela permaneceu quieta, esperando. Malkan se aproximou mais, seus lábios a pouca distância dos dela. Ele se aproximou mais – o que a fez prender o ar – e desviou o rosto, mergulhando-o contra seu pescoço. Ela não teve tempo de perder o fôlego.
A dor rápida e marcante, daquelas que permanece sob a forma de uma coceira ou algo assim pelos dias próximos, foi logo substituída por uma sensação que Catherine nunca havia experimentado. Era como se não houvesse nada além deles... da boca dele em seu pescoço, dos braços dele em sua cintura e nunca. Ela percebeu que ele a havia tirado do balanço e que estavam em pé, mas ela se sentia flutuar.
Kattie gemeu baixinho com o prazer que lhe arremeteu a estranha sensação proporcionada por seu sangue saindo de seu pescoço, um filete quente e gostoso escorrendo lento por ele. Seu corpo estremecia e ela se sentia em paz...
Foi quando as visões começaram. Ela viu, pelos olhos dele, os corpos das meninas com as quais Malkan se banqueteara. Todas elas aparentemente da mesma idade que ela, com cabelos aparentemente da mesma cor e, apesar da luz... Oh!, droga, todas tão parecidas com ela!
Malkan a soltou, empurrando-a pelos ombros, dando vários passos para trás, tropeçando e perdendo o equilíbrio. Entorpecida, Kattie sentiu a cabeça girar e teve de apoiar-se na estrutura do brinquedo para não cair. Ele a olhava com uma expressão de pavor, e ela sorriu amarga e mentalmente: aquele deveria ser um joguinho dele, uma forma de dar esperanças à vítima de que talvez ela, em vista das outras, sobreviveria; talvez o sangue fosse mais gostoso quando temperado com uma desilusão assim. No mesmo instante em que pensou nisso, ela soube que não, que a reação dele era outra coisa... a reação dele era...
O vampiro apontava um dedo trêmulo, sua boca suja com uma única listra em um canto balbuciando uma palavra aleatória (?). Você. Silenciosamente, ele a apontava e deixava claro que era ela... que...
Então Catherine se lembrou. Não como a gente lembra de uma brincadeira da infância, do primeiro beijo, ou do dia de ontem, por mais recente que pareça em nossa memória. Lembrou como nos lembramos quem somos, nossos nomes, onde moramos, à que núcleo familiar pertencemos e que família formamos, no exato momento em que acordamos. Ela se reconheceu. Mas não como nós nos reconhecemos... talvez como alguém com amnésia é capaz de reconhecer as próprias mãos ou o próprio rosto. Como se o corpo (ou a alma) tivesse uma memória a parte – e melhor – de a da mente.
Ela se viu de mãos dadas com ele, andando pelas ruas, voltando... voltando de algum lugar. Eles sorriam, conversavam. Ele a chamava por outro nome, mas que era o seu nome naquele momento, e lhe acariciava o rosto. Ela também se lembrava de vê-lo do chão, pela ultima vez antes de nunca mais enxergar, e de como ele parecia apavorado olhando dela para algo que fazia sombra à sua frente.
Kattie olhou o vampiro à sua frente com aquela mesma expressão de pavor. Chamou-o pelo nome, e as pernas de Malkan fraquejaram, deixando-o sentado na areia. Catherine se aproximou, repetindo aquele outro nome dele. Ela abaixou-se, acarinhou seu rosto e lhe disse que estava tudo bem... que ele sabia o que fazer, e que ficaria tudo bem...