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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Quarto Andar

Ela era linda. Não ao meu gosto: era alta demais, magra demais, com mãos e pés compridos demais; mas ainda assim era linda. De uma forma mais clara, para mim, era para meu interesse olhar, mas não pegar. Só que eu não sou a regra; na verdade, eu costumo ser a exceção.
O que importa é que ela era uma guria tri interessante, e sabia disso, por mais que negasse através de uma timidez em que eu não acreditava. Eu conhecia aquele olhar sedutor. Nunca fora para mim, nem o dela nem o de ninguém, mas eu o conhecia bem. E sabia que funcionava muito bem.
Também tinha aquele jeito de falar, aquele tom ronronante que surgia em sua voz quando reclamava que “os meninos da equipe” ficavam cuidando as “estagiárias ridículas do ensino médio”. Aquilo me dava calafrios só de ouvir, e evitava pensar em como me sentiria se aquele tom fosse dirigido para mim.
Ela sabia que era uma das mais incríveis – pra não dizer “a mais” –, o que talvez ela não soubesse era como ele estava enredado. Ele estava caidinho por ela, completamente de quatro, e ela não fazia a menor ideia do que estava acontecendo. E, apenas isto, ela realmente não sabia.
Na verdade, talvez só eu o soubesse. Só eu sabia o quão apaixonado ele estava, o quão ele era capaz de adorá-la, venerá-la, por detrás daquela máscara de “bárbaro” que ele insistia em usar. Talvez só eu soubesse aquele segredo, mas nem mesmo eu era capaz de prever o desfecho daquela história.
A morte nos sorria, dia após dia, mas sempre abraçada nos outros. Sempre para eles, nunca para nós. Foram-se uma amiga de uma de nossas colegas, a esposa de um primo meu, a irmã de um outro... mas, por mais próximo que fosse, eram eles, e não nós. Histórias parcialmente acessíveis...
Até que aconteceu. Os dois, coincidentemente, não vieram trabalhar no mesmo dia. Eu nunca acreditei em coincidência, que fique claro. E a minha crença fora fortalecida, nunca abalada. Eles também não retornaram no segundo dia. No terceiro, fomos avisados que nem as famílias sabiam de seus paradeiros.
Mas foi no quinto dia que o pavor bateu. Estávamos, uma colega e eu, buscando em algumas caixas, no terceiro andar, quando ouvimos... um grito horrível de medo, beirando à histeria, e um baque seco, vindo do andar acima. Corremos para fora e subimos às escadas de dois em dois degraus.
Visualizei a tia da limpeza estirada ao chão, desmaiada. Um cheiro acridoce e desagradável envolveu-me conforme me aproximei. Estava de joelhos, erguendo a cabeça da mulher, coberta de sangue, quando minha colega parou na porta. Vi suas pernas vacilarem, enquanto ela levava as mãos à boca e engolia um grito.
Agarrei-a pelos ombros, quando suas pernas cederam e seu corpo pendeu para trás, em direção ao precipício das escadas. Ajudei-a sentar, escorada na parede, enquanto ela, ainda com a boca tampada pela mão, apontada, com a outra mão, trêmula, para dentro do quarto andar.
Meu nariz nunca funcionara direito, e eu era totalmente incapaz de decifrar aquele cheiro asqueroso apenas com o olfato. Não precisei: acompanhando o dedo da minha colega, meus olhos foram capazes de auxiliar meu sentido enfraquecido. Dejetos e secreções humanas ocupavam grande parte do carpete.
Ela estava lá dentro, em pé, com os braços abertos como se esperasse um abraço. Estava às sombras, e a pouca luz a circulava pelas costas, apenas o suficiente para que eu visse que ela estava nua; sua beleza despida, ao meu ver, em uma vulgaridade incomum.
Me aproximei devagar. Pude ver seus olhos arregalados e a boca aberta em “O”. Avancei temendo o que quer que fosse. Duvidava que ela estivesse simplesmente ali, por cinco dias, nua e esperando um abraço. Meu pé trancou no corpo flácido da faxineira, e eu parei instantaneamente. Meu instinto me dizia para ter um cuidado sobrenatural.
Espremi meus olhos, forçando-os. Ela jogava os seus contra mim e movia-os para o lado da porta. Tentava me avisar que tinha algo ali. Forcei mais os meus, havia mais coisa nos dela... havia medo. Medo pelo que tinha além do umbral da porta, escondido pela parede. Medo que eu desse mais um único passo para frente.
Levei a mão às costas, sacudindo-a, pedindo silenciosamente, naquele movimento, que minha colega sentada a segurasse. Segurou; da distância que estávamos, ela deveria estar em pé... ou quase. Gritei para que ela trouxesse mais gente, enérgico, e pulei três degraus para baixo.
Um cano de ferro, sujo de sangue, cruzou a porta, raspando o jaleco da minha colega e batendo com força na parede. O braço que emergia do umbral estava torto. Ele apostava em um ataque surpresa, que nocautearia o intruso antes que este pudesse ter qualquer reação.
O cano bateu com força contra a parede, arrancando um pedaço comprido, mas superficial, de pele da minha testa. Joguei os braços para frente, segurando o cano que tremia devido ao impacto, enquanto minha colega descia deslizando escada abaixo. O braço, em ângulo desconfortável, não teve força para manter a arma quando puxei.
Foi, então, a minha vez de apostar e perder. Esperei que ele não saísse da sala, que pensaria desesperadamente em uma forma de reverter a situação e manter-se na vantagem. Bom, ele se manteve em vantagem, mesmo saindo do esconderijo. Seu olhar ensandecido não me assustou menos que a machadinha que tinha nas mãos.
Girava o machado em uma das mãos. Eu sabia, e ele tão bem quanto, que aquele movimento era difícil de se manter, mas, uma vez se movendo, a arma desferiria ataques quase impossíveis de serem evitados. Minha testa latejava, e um pouco de sangue chegou ao meu olho, ardendo e cegando-o, enquanto eu descia um pouco mais.
Como que atraído pelo corte, ele mirou o alto da minha cabeça, esticando o corpo para frente e para baixo. Ele apostava na força de um único ataque. Mas aquele fora fácil de desviar, bastou que me abaixasse. A adrenalina me permitiu um contra-ataque tão tortuoso quanto os golpes dele.
Girei o cano de baixo para cima, pela esquerda, acompanhando o avançar do braço dele. Acertei o cotovelo, quase sem força, os ombros escapando de seus lugares, mas suficiente para fazer sua mão amolecer e a arma cair. Mas talvez o erro fora meu, e não dele.
Como se total e antecipadamente calculado, ele ergueu a perna até o joelho lhe encostar na barriga, e empurrou-a para frente, jogando o corpo para trás. A sola do tênis sujo me acertou no rosto, quebrando-me o nariz e quase deslocando meu maxilar.
Meus ombros penderam para trás, a cabeça sendo jogada, o sangue do nariz descrevendo um arco. Desci, embolando-me sobre mim mesmo, a escadaria até o meio-nível. Ele deixou as armas caídas, e avançou cerrando as mãos. Eu sabia, e acho que ele também, que até agora eu tivera sorte, apenas.
O primeiro soco desceu com todo o peso de seu corpo. Eu tentei rolar para o lado, mas não consegui evitar. O punho me acertou na nuca, fazendo minha cabeça quicar. Virei-me de bruços, enquanto ele se preparava para o próximo soco, e joguei as pernas para cima.
Por pura sorte, sempre ela, acertei-o nos bagos com força suficiente para fazê-lo hesitar. Aquilo lhe deu mais raiva, e me deu tempo para me arrastar para os degraus que desciam, e levantar-me. Pude ouvir passos rápidos pela escadaria. Mas ainda estavam a um andar e meio abaixo.
Ele me agarrou pelo pescoço, em uma gravata. Os braços não defeririam golpes, então abracei-o do jeito que pude. Joguei o corpo para trás, tirando os pés do chão. Ele perdeu o equilíbrio, dando dois ou três passos para trás. Foi o suficiente para que eu enrolasse minhas pernas nas dele, e jogar meu peso para a direta.
Caímos de lado, sua cabeça fazendo um barulho feio contra a quina de um dos degraus. Os braços afrouxaram em torno do meu pescoço, mas não o suficiente. Meu braço, pelo outro lado, quebrou ao bater nos degraus sob o peso dele. Houve a certeza, mas não a dor.
Os demais colegas chegaram correndo. Nos desvencilharam e levantaram. Tentei falar, mas foi inútil. Minha colega foi capaz de explicar o que ela tinha visto antes de correr e deduzido pela cena que encontraram. Foram preciso quatro rapazes para contê-lo, enquanto ele rosnava e tentava se soltar. Havia raiva em seus olhos, mas não sanidade.
Fui à frente das demais colegas, a garganta ainda lutando para abrir, o braço mole do lado do corpo, dobrando em ângulos impossíveis enquanto eu subia os degraus. Não quis segurá-lo: não estava doendo, e achei que doeria se o levantasse.
Saltei a tia da limpeza e atravessei a porta de supetão. Não deveria haver um cúmplice. E se houvesse, eu já tinha feito o suficiente para morrer como “herói”, ou o que o valha neste caso. De qualquer forma, realmente não havia ninguém. Avancei direto em direção a ela.
Às minhas costas, uma colega acendeu as luzes. Havia sangue, fezes, urina, vômito e o que mais fosse possível sair de um corpo humano vivo por todo o carpete. Mas isso abalou ferozmente uma única colega, que deixou sua própria contribuição de sujeira, em um arroto úmido demais para ser só de gazes.
O que nos deixou apavorado foi a visão dela. Estava presa à uma gigantesca armação de metal, o corpo todo sustentado por ganchos grandes, como os de açougue. Costas, braços e pernas suspensos do ar. Suas pupilas estavam presas por ganchos pequeninos, impedindo-a de fechar os olhos.
Ela estava consideravelmente machucada pelo corpo todo. Ao desviar os olhos, fui capaz de reconstituir toda a situação. Havia um colchão grosso, jogado atrás da armação, sujo de sangue, e comida enlatada pelos cantos. Havia também baldes, panos – uns sujos, outros limpos –, e produtos de limpeza.
Ele a usava na cama, de todas as formas possíveis – e eu desejei que isto fosse uma figura de linguagem: desejei que ainda houvesse alguma sanidade nele para evitar coisas hediondas envolvendo aquelas nojeiras espalhadas pelo chão, algum rato que pudesse passar pela sala, mutilações pequenas e coisas próximas.
Quando cansava, a limpava de qualquer maneira e a pendurava naquele bizarro varal. Ele não queria correr o risco de que ela ao menos tentasse fugir. Os ganchos estavam enfiados dentro demais da carne, com uma precisão cirúrgica, para que ela tivesse coragem de forçá-los.
Ouvi uma das colegas descer correndo, gritando por ajuda. Seu ultimo grito foi um esgar triste quando ela passou pela porta, por cima do corpo da faxineira. Vi os olhos dela perderem o alívio que ganhara ao nos ver, voltando para um pavor de gelar o sangue. Eu soube antes que a luz se apagasse, sem precisar me virar...

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Esquizofrenia - Capítulo 2 - Parte 2

Rômulo acordou sobressaltado. Os olhos abrindo de repente, forçando o cérebro a religar todas as áreas inertes durante o sono. O que, certamente, funcionou muito bem: o segurança nunca acordara com lembranças tão frescas do que sonhara; e aparentemente acordara de um sonho dentro de outro, para só então realmente acordar.
Ele odiava qualquer sonho que não fosse total e completamente comum e possível de realmente acontecer. Sonhos em que dirigia em alta velocidade em um grande conversível vermelho, em que comia um pequeno peru natalino inteiro... em que tinha “boas relações” com uma certa enfermeira.
De qualquer forma, não demorou muito para reconectar-se com o mundo real à sua volta. Estava sozinho na sala da segurança, na recepção principal, na entrada do hospital. Olhou para o relógio e estranhou a situação toda; ele deveria estar acompanhando Lisa e um outro enfermeiro nos atendimentos à pacientes mais agressivos. Aparentemente, seu colega – baixo e magro, mais um “cuidador de câmeras” do que alguém capaz de deter alguém – fora levado em seu lugar, o que era fora das regras: apenas Rômulo era autorizado a fazer aqueles acompanhamentos.
E tudo isso era realmente muito estranho, já que ele sonhara que estava fazendo aquelas visitas... E, nossa!, como seu pescoço doía.
Estava escuro, e a única luz entrava pela janela pequena da sala, que dava para o jardim interno. Aparentemente chovia lá fora. O segurança levou a mão à nuca e torceu o pescoço para os lados; tinha dormido de mal jeito naquela cadeira desconfortável até mesmo para sentar, e... Seus olhos arregalaram-se ao caírem no cronograma. Hoje era o dia! Ele deveria ter posto em prática o plano do qual o senhor Freeman o tinha encarregado. Oh, Pai, ele havia sonhado até mesmo com a cobrança do velho!
Olhou novamente para o relógio. Se corresse – como se fugindo do próprio diabo – até o subsolo, talvez alcançasse Lisa à tempo. Talvez ela tivesse, como fizera uma única vez, começado pelo último paciente da rota, deixando Jonathan para o final.
Levantou-se, mas o pescoço latejou tão forte que a visão escureceu e o equilíbrio quase fugiu por completo. Tentou colocar as vértebras no lugar, a cabeça pesando para os lados. Avançou vacilante, tateando o ar em busca da maçaneta.
Os olhos clarearam com as pupilas dilatadas. A pouca luz que entrava pela janela caia pesadamente contra a parede junto à porta. Ao lado do umbral fechado, havia um mural de avisos. No mural, algo que o cérebro de Rômulo tentou – com todas as forças, mas sem sucesso – negar, enquanto um terror lhe subia frio pela espinha.
No mural, um alfinete, circundado por uma mancha – marrom, àquela luz acinzentada – de digital, prendia um desenho infantil.
Era um desenho bobo, de traçado inocente, mas não capaz de mascarar o demônio retratado, o horror presente em cada reta e cada curva. O monstro era realista demais naquela imagem, e mesmo sendo impossível que fosse real, algo no coração de Rômulo acreditara nele de um jeito aterrador que realmente o impulsionara porta a fora.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Esquizofrenia - Capítulo 2 - Parte 1

Valence Town, trazia, em letras garrafais e decorativas, à frente do folhetim promocional.
Valence é uma pequena cidade universitária. E isso (pequena e universitária), neste caso, é uma grande controvérsia... por mais que seja verdade: a cidade possui duas escolas, uma particular e uma “pública”, e ambas disponibilizam cursos superiores.
Em suma, Valence era uma cidade autossuficiente. Por um lado, era capaz de receber gente nova a cada novo semestre e abrigá-los ao longo de 4 ou 5 anos. Por outro, nunca crescia; Era destinada à ser uma cidade pequena para sempre... até porque, seu território é marcado por altos muros cercando-a ao sul e à leste, por um largo rio à oeste e morros e um denso bosque (um parque florestal com “resquícios” de mata natural) ao norte.
Uma cidadela turística, no final das contas. Uma cidadela pequena demais para tanta coisas que incorporara ao longo dos anos. Coisas bobas, como “universitária” e “turística”, e coisas mais pesadas como... bom, como crimes um tanto quanto desagradáveis em qualquer cidade.
Quase ninguém lembra, e a maioria que se recorda, toma como lenda (merchand) a série de assassinatos ocorridos à mais de cinquenta anos. Na época, a polícia categorizou como obra de psicopatas completamente doentes; o padre, como obra de rituais macabros de veneração ao capeta. Independente do que diga a ciência, mal sabe o padre que ele é o que mais perto chegou da verdade...
Da mesma forma, caiu no esquecimento o incidente de, mais ou menos, dez anos antes. O filho mais velho de Azmaria matara a irmã mais nova; um assassinato brutal. A pobre mulher levou quase três anos até estar apta a trabalhar novamente. Acreditou-se que ela nunca conseguiria reconstruir a vida nunca, mas não foi grande surpresa – nem houve muitos comentários – quando Landau e ela começaram a andar de mãos dadas pelas ruas da cidade.
Landau era o médico de seu filho, fora o psiquiatra de Azmaria durante toda aquela fase difícil, nada mais natural, diziam as pessoas, que ela se apegasse a ele para reerguer-se do fosse que aquele garoto do Rubro a enfiara. Pouco também fora a repercussão na imagem de Landau: sua vida era imaculada, sua índole intocada, e ele – que saíra de Valence apenas para suas formações acadêmicas – era uma das pessoas mais influentes na pequena cidade.
Mas, nunca, nada, realmente, em Valence, voltou a ser, nem mesmo próximo, como era antes. E talvez, só assim, ao menos uma vez, em Valence, a coisa se encaminhasse para aquilo que se considera normalidade...

sábado, 17 de dezembro de 2011

Roland - Parte 2

Uma "abertura" antes da postagem em si...
A fanfic baseada em A Torre Negra, de Stephen King, foi reavaliada para uma história menos limitada à esta condição. Assim, deixei de lado o título original da obra de King, alterando-o para Roland.
Agora, sim, à postagem. Boa leitura

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O gaucho avançava pelo deserto.
Ao longe, era capaz de ver as montanhas sempre à leste e o mar sempre à oeste. Há seis anos tinha aquela companhia, e ela era aterradoramente eterna... mas não de todo o ruim; quando se sentia mal, de qualquer forma, por causa do cenário que nunca era deixado para trás, pensava consigo que seria pior apenas o deserto. Sentia uma estranha crise de claustrofobia (?) sempre que pensava naquele sinistro “globo de neve” que era o deserto – areia por todo a base interna e a cúpula de vidro fingindo-se maliciosamente de céu aberto – e se sentia grato por aquilo que havia à sua esquerda e à sua direita.
Caminhava sem vontade, e só o fazia porque seguir aquele caminho era tudo que lhe restava. Suspirou fundo, olhando pela enésima vez para o sol quente e sempre disposto a escarnear dele. Continuava, não porque acreditasse – ou mesmo se importasse qualquer pouco – pela lenda que o elegera como O Sobrevivente; não porque aquela era a trilha decidida pelos deuses para que ele trilhasse para cumprir seu destino e “rebobinar” a Grande Roda do Karma do Universo.
Ele sentou-se na areia, dentro das ruínas de uma pequena casa de tijolos de barro e palha. Já passava daquilo que em seu tempo fora chamado de dez horas da noite, não que isso importasse qualquer pouco... não para ele, que poderia parar sempre que estivesse cansado e tivesse suprimentos que compensassem, nem para aquele maníaco sol que hoje, como fizera já outras vezes, não se deitara.
Continuava por vingança. E a necessidade de vingar-se estava tão arraigada nele, que já chegara a se perguntar em (in)um(eros) momento(s) o que faria depois de finalmente conseguira. Sua apatia com a vida era grande o suficiente para impedi-lo que se matasse, direta ou indiretamente. Mas o que ele, então provavelmente o último humano na Terra – tendo em vista que ele matara o “outro sobrevivente” – poderia fazer naquela inútil ruína atroz? E, ah, como ele tinha medo dessa pergunta e total horror da resposta mais fácil para ela: seguir, finalmente, para seu destino... se é que um dia ele conseguiu afastar-se dele.
Observando a pequena fogueira que fizera para assar o diminuto rato – e última proteína que tinha em seu suprimento – que teria para a ceia (essas palavras, já sem qualquer significado, sempre o faziam sorrir... aquele sorriso sem qualquer graça por trás, duro e seco, maduro e irônico demais, mas ainda assim espontâneo, se é que lhe sobrara qualquer sorriso que não precisasse de força para surgir), pensou em todas as chamas que lhe marcaram a vida que tivera há muito, muito tempo: o fogo na vala em que se assava o churrasco, a vez que machucara os dedos com um fósforo que deixara queimar até o fim, os fogos de artifício que o Bento fazia questão em toda troca de ano e em homenagem ao Homem Jesus, o fogão à lenha que esquentava a cozinha da estância durante todo o inverno, a própria estância como uma pira gigantesca quando o Império avançou...
Acendeu um palheiro. Remexeu em sua mala de garupa; precisava torná-la confortável para que fosse usada como travesseiro. Retirou dali, largando entre ele e a fogueira, um saco balas de revólver, um afiador, uma boleadeira e mais alguns outros objetos.
Tomou nas mãos um facão e observou o cabo, sua extensão recoberta por tiras de couro gastas pelo tempo e manuseio, e a marca em sua base. Depositou-o no chão e pegou um revólver, também marcado na base da coronha encrostada de ouro. Retirou-os das bainhas, e ambos reluziram em um estranho azul perolado à luz da fogueira, sem refletir o avermelhado do fogo.
O rato estava quase pronto. Procurou as trouxas de couro com os vegetais secos e salgados. A comida teria o tão conhecido gosto acridoce característico de legumes em iniciada decomposição, não que ele realmente se importasse. Ainda era capaz de lembrar do repolho azedo que, mesmo vindo de outra cultura, era comum em sua região. Retirou da cintura o facão – comum – e o roedor do fogo; levou o espeto à boca, mordeu o primeiro pedaço, cortando o pedaço com a faca, e mastigou firme. Pegou um pedaço de cenoura com a ponta do facão e levou a boca.
Intercalando carne e vegetais, comeu sem pressa. O sol ainda brilhava firme, mas finalmente afastando-se do centro do céu, quando ele deitou-se. O dia de amanhã será tão tedioso e idêntico ao de hoje, e caminhar seria tudo que faria. Talvez se aproximasse das montanhas para caçar, ou do mar e tentar a sorte numa “pescaria”. Talvez, se achasse água doce, mateasse solito por algum tempo. Talvez, se encontrasse uma vaca ou ovelha, fizesse um churrasco de verdade. Talvez... talvez...
… e a escuridão lhe envolveu, levando-o para longe de qualquer pensamento, para um sono frio e sem sonhos.