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segunda-feira, 28 de março de 2011

Cult-game


Meu gato morreu. Sumiu há quase duas semanas; o pobrezinho acordou muito mal naquele dia, depois de passar pela – sem duvida – pior semana de sua curta vida. E, devido aos sintomas e ao desaparecimento dele, mesmo ruinzinho – coisa que era bem incomum vindo dele, já que ele corria de volta para casa por qualquer machucado e só tornava a “gatiar” quando já estava, no mínimo, 70% melhor -, que os vizinhos, sádicos demais para colocarem veneno em um pouco de carne moída – suponho eu que tenha sido atravéz desse “alimento” – substituiram a boa e velha estriquinina por vidro moído.
Vi um gato, hoje, que roçou na minha perna quando parei ao seu lado. Senti um terrível aperto no peito, já que o Jake estava, depois de “tanto” tempo, começando a roçar na gente. Simplesmente não há meios de homenageá-lo, ou mesmo expressar a dor que sinto pela perda dele, então decidi postar aqui dois textos que escrevi quando ele apareceu “envenenado” pelo vidro.
Descanse em paz, Jakinho...
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Estou cansado. Acho que este é realmente o melhor jeito de começar este texto. Na verdade, exausto, vindo de uma cansativa semana de trabalho ouvindo e dizendo exatamente as mesmas coisas, depois de uma primeira semana incrivelmente tensa na faculdade e um gato adoentado desde ontem à noite (possivelmente envenenado)... isso tudo culminou em uma crise inspiradora terrivel e angustiante pela simplicidade da coisa.
Nesta noite de transição entre a sexta-feira, 04 de março, para o sábado de carnaval, 05 de março, eu simplesmente não pude me dirigir à cama. Durante a aula tive uma imensa vontade de voltar aos meus trabalhos (há muito parados, diga-se de passagem) rpgísticos, mas foi durante o banho, recordando da ultima edição da unica revista impressa sobre RPG, que eu me dei conta de uma coisa ridiculamente boba.
Nós temos a grande e insana mania de estragar tudo, não? Nós temos livros básicos de RPG e infindáveis suplementos que, no final das contas, trazem números quase ao infinito. Os próprios cenários costumam trazer regras novas, houserules, monstros, raças, classes e todos os outros tipos de números impensáveis; e, no fim das contas, nos afastamos cada vez mais do sentido básico do RPG.
Talvez eu esteja falando besteira para a maioria das pessoas, mas vou dar um exemplo bem simples: nós temos, devido à História que se aprende na escola, a idéia de que a maioria dos indígenas das Américas eram um bando de “homens das cavernas” que corriam pelados por aí, sem qualquer tipo de sociedade complexa (com hierarquia política, religiosa, militar etc.), enquanto, na verdade, tudo indica ter havido Estados (cacicados, para não pecar por excesso) fortes e amplos, bem estruturados, como os Incas, Maias, Astecas, Romanos e tantos outros.
Nós simplesmente temos mania de virar as costas às ciências que servem, ou deveriam servir, de base ao nosso hobby, como Geografia, Sociologia, Teologia, Antropologia e a própria História. Não estou dizendo, aqui, que apenas Doutores seriam capazes de jogar um “RPG de verdade”; até porque, creio eu, nenhuma instituição de ensino (inclusive a Academia) trabalha mais com conteúdos (“quem descobriu o Brasil? Em que ano? Como chegou aqui?) e sim com competências (“analisar a organização social, econômica, política e cultural das sociedades complexas das Américas para que possa comparar as diferentes culturas”) pelo simples motivo que conteúdo, hoje, é disponível à todos pela internet de uma forma bastante completa e densa, basta aprendermos cruzar informações para conferir sua veracidade.
Estou falando que pecamos, e muito, ao trabalharmos com conceitos fixos. A cada livro que abrimos, temos raças estereotipadas com “habilidades” engessadas; é sempre, em batalha, o anão à frente, abrindo caminho, o humano no meio com ataques à distância, o elfo atrás com seu suporte mágico e o halfling correndo pelo meio do combate, cortando tendões de calcanhares e batendo carteiras. Classes tão entrevadas quanto, limitando personagens à uma unica função nos grupos. O que acaba, geralmente, “exigindo” que cada cenário traga mais e mais raças, mais e mais classes.
Mas, qual a real necessidade disso? Afinal, um guerreiro sempre foi um guerreiro, fosse ele godo, huno, nipônico, lusitano ou tupi-guarani... E, já que enveredei por esta linha, é interessante lembrar que, em nosso mundo, ao contrário do que pensara Colombo ao chegar às Antilhas, a única raça humanídea era a própria raça humana. Comparemos a diferença entre um omágua/cambeba e um italiano, por exemplo; um aborígene australiano, um nativo africano e um asiático.
Que fique claro, aqui, que não estou solicitando uma “abolição” dos cenários comerciais, ou qualquer coisa assim. Estou apenas abrindo uma discussão; solicitando, sim, uma reflexão sobre o tema. Por que uma necessidade tão grande em raças, classes, monstros e regras novas brotando de todo o lado? Por que a cor de nossas mesas se dá sempre através dessa miscelânea bizarra?, essas colchas de retalhos exageradamente mista e desconexa.
Por que não podemos focar nas culturas diversas que as raças clássicas podem gerar de acordo com o ecossistema que interagem e em que se inserem? Um bom exemplo é a Grécia clássica, que nunca foi um “reino” unido, mas várias pólis (cidades-Estados) dispersas; e mesmo compartilhando uma cultura genérica (como deuses, arquitetura, “vestimentas”, idioma etc), cada uma possuindo suas especifidades, divergindo inclusive nos sistemas de governo, “postura” militar e várias outras. Todas nascidas na mesma península recortada por morros, montes, montanhas etc.; com uma agricultura quase toda baseada em parreiras e oliveiras, que era o que o terreno permitia, e as viagens sendo mais fáceis através do Mar Mediterrâneo que por terra; situações que possibilitaram ao passo que obrigavam o desenvolvimento do comércio com a Ásia Menor e o Egito (que também tinha mais contato com os povos do Mar Mediterrâneo que com os demais da África, graças ao deserto que lhe cercava). Geografia, inclusive, que era um “limitador” militar, tornando muito mais viável a infantaria, estrategicamente treinada, que a cavalaria.
Nem precisamos ir, cronologicamente, muito longe para falarmos de “aventuras” sobre o debate proposto. Os atuais conflitos nos países árabes, e a guerra civil na Líbia já nos apresentam toda uma questão sócio-cultural, politico-econômica bem ampla (e problemática, diga-se de passagem) sem a necessidade de raças exóticas.
Acho que é possível, sim, explorarmos os manuais básicos ao máximo, mesmo que adaptando, quando necessário, customizando raças e classes, trocando uma habilidade por outra. É possível sair dos esteriótipos engessados das raças clássicas, sem perder suas propriedades e fugindo dos clichês. É totalmente possível termos diversão máxima, mantendo a simplicidade e nos afastando dos estigmas de “jogo chato e difícil”, “pesado e cheio de regras”.

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Para MRM
Ainda é carnaval, e meu gato não morreu. Sei que é estranho começar um texto assim, mas é, na verdade, bastante adequado... bom, para o meu caso. Escrevi, entre sexta (04/03) e hoje, segunda (07/03), uma reflexão sobre a pouca exploração (para não falar em total ausência, o que, talvez, possa parecer um tanto radical demais) das ciências humanas como Sociologia, Antropologia, História etc., nos RPGs de mesa. Minha pretensão é que tal texto seja publicado na Dragon Cave (revista eletrônica do Mighty Blade, com a qual eu, também, procuro colaborar como posso), mas que, cedo ou tarde, acabará postado em meu blog (doerik.blogspot.com), de qualquer forma.
Bom, o que nos importa agora é que, ao decorrer destes dias, eu notei que essa falta nos RPGs de mesa também acontece, comumente, nos jogos eletrônicos (ditos) amadores. Mesmo com gráficos incríveis e roteiros envolventes, acabamos sempre por “pecar” na exploração de conceitos culturais, que costumam nunca ser um exagero.
Sei que não é um bom exemplo, já que seu foco é justamente este, mas God of War trabalha bem a cultura à que se propõe. Enquanto em nossos projetos (não sei agora, mas em minha época costumava ser 99,9% dos casos) os personagens vagam por mundos imensos (mapas tão grandes que sempre fugiram das minhas capacidades... e da minha paciência, claro), atravessam florestas, escalam montanhas imensas, exploram ruínas infindáveis e, no final das contas, a única diferença é gráfica; eles sempre chegam em uma cidade com um inn, um mart e NPCs que se expressam exatamente da mesma maneira... tudo sem qualquer traço cultural divergente de um canto e outro, uma região e outra.
Um exemplo “melhor” para ilustrar o que eu quero dizer talvez seja o game antigo, mas sempre renovável, Chrono Trigger. Para ser sucinto (e não criar um detonado, nem encher isto daqui com spoilers para todo lado), no “tempo presente”, o reino é dividido em 3 ilhas-continentes, duas delas habitadas por pessoas comuns e conectadas por uma ponte... na outra, ao oriente, vivem monstros que odeiam os humanos à séculos, que (extra-oficialmente) possuem seu próprio regente e mentém um culto ao maior inimigo que o reino já enfrentara, um mago que liderou os monstros em  uma guerra de vitória quase certa contra “nós”. Ao decorrer do jogo, nós somos apresentados à diversas culturas que vão além da “arquitetura e vestimenta”, mas que se expressam na fala dos personagens, em suas personalidades, históricos e visões de mundo, ambições e necessidades. As sociedades, suas complexidades (política, hierarquia, instituições etc.), seus modos de vida (incluso alimentação e comércio), estão ali, detalhados para mais ou para menos de acordo apenas com as escolhas do jogador (como a quantidade de vezes que ele falará com os NPCs, quais NPCs, antes e/ou depois de determinados eventos e por aí vai).
Como disse no Cult on the Table (o texto citado lá no começo), não estou colocando que apenas PHDs em Geologia, Arqueologia, Política e Economia seriam capazes de produzir bons roteiros, afinal, conteúdos estão aí, disponíveis à qualquer um, na internet. Se alguém quiser saber sobre um determinado evento como o Renascimento, a Inquisição, ou qualquer outro, precisa apenas digitar duas ou três palavras no Santo Google e ir refinando a pesquisa conforme achar necessário.. e, vóila, terá em sua tela tudo o que quiser saber, e mais um pouco.
Sei que muitos vão considerar isso trabalhoso e até desnecessário, mas eu me pergunto, embasado em tantos projetos nunca concluídos, se esse trabalho não valeria a pena. Será que, inclusive, não seria muito mais fácil de se elaborar o roteiro sobre uma guerra quando se conhece todas as questões políticas, econômicas e religiosas que costumam estar por trás desses conflitos? Será que um conhecimento, mesmo que exclusivo para o jogo, em história (mitos e símbolos), não torna a escolha de monstros e desafios mais simples e verossímil? Será que não seria muito mais prático ter algumas noções de geografia na hora de construir os mapas? Será que não seria tudo isso mais gratificante? Parece bobo, mas não é.
Sempre considerei a literatura uma boa base, mais para o RPG eletrônico que para o próprio RPG de mesa. E justamente por um motivo simples, mesmo quando a história foca um grupo de personagens, apenas um é o principal. Em O Senhor dos Anéis, a história gira em torno de Frodo, mesmo que Aragorn seja de extrema importância. Em A Torre Negra, o personagem principal é Roland, mesmo que ele não seja capaz de percorrer toda a costa do Mar Ocidental sem a ajuda de Eddie.
E é falando em livros que eu trago outro exemplo; Rangers – A Ordem dos Arqueiros é uma série infanto-juvenil que, até agora, tem me agradado bastante. É uma literatura gostosa e leve, sem deixar de ser densa e bem trabalhada; e o melhor, detalha muito bem as diferenças culturais dos reinos por onde a história passa, sem tornar-se cansativa e/ou tediosa.
A discussão/reflexão que proponho é sobre o quão distantes estamos das ciências, do ensino-educação e porque temos esta péssima mania de nos afastarmos mais e mais se estes conhecimentos podem facilitar nossos hobbys, e, inclusive, podem se tornar extremamente divertidos, cabendo apenas à gente escolher como trabalhar com eles.

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Caso as respectivas revistas quiserem publicar as matérias, não há qualquer problema.