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quarta-feira, 2 de maio de 2012

Roland - Parte 4

O gaucho mateava em silêncio, observando a pequena vila: haviam apenas quatro casas largas, mas não compridas. Era estranho estar novamente entre pessoas. Observava, saboreando o amargo com calma, para os três piás conversando. Os dois que haviam fugido não acreditavam que o outro voltara vivo, enquanto este ria-se dizendo que obrigara ao homem a trazê-lo.
Mesmo duvidando (cada vez menos), os maiores ouviam o pequeno com atenção redobrada, sobressaltando-se sempre que o gurizinho erguia as mãos, falava mais alto ou dava uma ênfase maior ao que dizia. Certo era que a história encompridava-se a cada vez que era contada. O homem não se importava como sua imagem ficaria entre as crias daquele fim de mundo, mas era divertido pensar em que, talvez, aquele piazito ganhasse certa “fama” de herói.
Quando a cuia roncou, com um suspiro de pesar, entregou-a ao preto velho ao seu lado.
- Mas tu ainda não disse teu nome – disse o velho, enquanto servia a água quente.
- Roland, velho pai.
- Pois escuite, Roland – e sorveu o chimarrão – tento ensinar, mas naum aprendem, que é errado roubar. Pero, 'stou feliz que tenham te achado.
- Mas... velho pai, não fiz mais que minha obrigação...
- Hasta porque querias teus pertences de vorta. Eu vejo... eu vejo... Pero, escuite. E escuite bem. Tu atravessou este mato como, fio?
O menino, transformado, guiara Roland pelo caminho todo, da praia até a vila. Estavam presos um ao outro por dois laços: desta forma, se o rato tentasse se desvincilhar, ou um laço se apertaria com o movimento, ou o homem poderia estreitar o outro puxando o seu lado da corda. O guri não tinha como fugir... como se quisesse.
Nem bem dez minutos dentro da floresta, o menino guinchou e parou. Roland já tinha percebido, incluso sacado o facão. Um sanguanel, carmim como o sangue, parou e olhou o homem nos olhos, e então continuou por entre as moitas e árvores. O rato guinchou de pavor, ao ver a pequenita criatura, e correu para os braços do gaucho, que ria.
- Guiado pelo guri, velho pai.
- E guarnecido pelos 'spritos do mato, fio. Eu tô ruim dos zóio, má naum do coração. A muito que eles naum deixam ninguém passar. Meus guri se arriscam pra roubar cousa ou outra, mas eu acho que os 'spritos não iam tirá desse pobre véio o poco que le resta, nõ'á?! Pois escuite, fio, o Patrão Véio me disse, mais d'uma veiz, que um hôme bom viria... e que esse hôme bom nos guardaria e protegeria. Que esse hôme bom teria a alma farrapa e que naum se assustaria com a peleia.
- Velho pai, eu não entendo...
- Calma. Tu descansa hoje. Por la mañana... - entregou a cuia servida à Roland, levantou-se e entrou em sua tapera – Por la mañana – e fechou a porta
A manhã não chegou à tempo...
Enquanto tomava o último mate, pouco a pouco, alguns animais se aproximavam da pequena aldeia. Eram quatorze: uma coruja, uma mulita, quatro cuscos, duas lebres, dois bugios, três tatus, um cavalo. Com os guris no meio, os que viravam rato, eram dezessete. Com o velho pai, dezoito. Isso já era o suficiente para deixar Roland receoso. Mas, contando com o próprio Roland, eles eram 19. Sentiu o corpo estremecer involuntariamente, e forçou-se para impedir a reação. Levantou-se, a cuia ainda na mão.
- Noite! – e esperou que se transformassem.
Desconfiados, a bicharada recuou, parecendo hesitar; à exceção da coruja, que voou do galho em que sentara para observar Roland, aproximou-se batendo as asas e, representando pousar no chão, foi crescendo e crescendo, as penas sumindo, as garras virando pés. Quando caiu, leve, à frente do gaucho, era um moço jovem, bonito até, e com um olhar forte, perspicaz e sábio. O olhar de uma coruja. Tudo que Roland via nos olhos do menino-coruja, era o que este via nos olhos daquele: o olhar de um matador.
- O senhor tem os olhos de um falcão.
- Acho que, vindo de ti, é um elogio – o homem tentou sorrir, mas parecia impossível sorrir para alguém tão capaz de colher uma vida, quando se encontra em certa desvantagem (mais moral do que qualquer outra).
- O senhor é o dezenove. O senhor é o Homem Bom – nenhuma foi pergunta. Roland não gostou delas.
- Eu sou apenas um viajante que, por azar, tropiquei com esses meninos.
- Meus irmãos lhe roubaram. O senhor veio tomar o que lhe é seu. Também nos roubam. Também queremos tomar o que é nosso – Roland teria dito que era muito justo, mas foi interrompido – O senhor vai nos ajudar.
- Creio não poder fazê-lo – o homem havia gostado do velho e até se sentido com certa obrigação de ajudá-lo, mas o tom daquele corujito não lhe agradava.
- O senhor não tem opção. Ou nos ajuda, ou não sai daqui.
Roland levou a mão ao facão. Eram apenas crianças e o velho certamente precisava deles para viver, mais do que eles precisavam do velho, mas não baixaria a crista para um piá qualquer. Ensinaria à coruja algumas lições com estouros de facão, se fosse necessário. Daria de estouro nos dezoito, se fosse preciso para sair dali. Não aceitaria uma ameaça de um piá metido à besta... ainda mais de um piá com aquela frieza no olhar.
Mas Roland não chegou a desembainhar o facão. Um vento frio varreu a clareira, vindo e indo de lugar nenhum, subindo pelas costas do homem e lhe agarrando a nuca. A terra explodiu por todos os lados, como se projéteis invisíveis estivessem alvejando barris de pólvora enterrados.
Não havia tempo para discussão. O gaucho sentia uma presença pesada por todo o lugar, mas os sétimos filhos seriam capazes de farejá-la. “Protejam o velho!”, gritou para alguns; “Comigo!” gritou para outros. Não abrira a boca uma única vez, o barulho das explosões impediria qualquer comunicação verbal.
Correra para fora da clareira. Sem se virar, soube que um grande grupo se reunia em torno da cabana do velho. O protegeriam, o levariam para longe do ataque. Roland corria sem olhar para trás, certo de que os poucos que chamara consigo o acompanhariam, o guiariam até ela.
Os animais emparelharam com ele, o ultrapassaram. O homem não os acompanharia tão fácil, não esperava que fossem tão afobados. Porém, o cavalo diminuía a velocidade, convidando-o a subir. O grupo avançara rápido, e a pressão na cabeça de Roland aumentava. Seus olhos começaram a lacrimejar, e seus ouvidos pulsavam como se fossem explodir. O ar queimava suas narinas e parecia solidificar em seus pulmões. Só ele parecia sentir os efeitos daquela emanação, e sabia bem o porque.
Onde tu estás?
Vá embora!
Preciso ter contigo!
Vá embora, gaucho, ou não me apiedarei de ti! Vá!
Sabes que não poderá me enfrentar. Onde estás?
Vá! Leva essa marca contigo! Tu tá condenado com ela! Leva ela daqui e vai!
Velha mãe, por favor.
Não confabularei contigo! Não terei contigo! Vá!
Se não?!
Ela não respondera; não com palavras. A visão de Roland estava embaçada, e ele teve a sensação de que as árvores haviam se retorcido, se mexido, que as raízes haviam saído da terra, que os galhos haviam descido. Era tudo uma alucinação, ele tinha certeza. A resposta dela era deixá-lo louco, pressioná-lo até fazê-lo perder a coragem e desistir de sua busca final.
O cavalo relinchou e empinou. O bugio gritou de dor. O cachorro rosnou alto e latiu. A coruja piava constantemente. O homem, que cavalgava em pelo, escorregou das costas do bagual. Encontrara o solo com uma pancada forte. O mundo inconstante em que Roland vivera os últimos minutos, desaparecia numa escuridão indolor.