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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Quarto Andar - Lado B

Este conto é, de certa forma, "baseado" no conto Quarto Andar. O que gera duas vias: a) é um conto totalmente a parte, apenas com a mesma abordagem; ou b) é um complemento para um "buraco", uma melhor explicação para a história que poderia parecer incompleto ou vago por causa do salto no tempo corrente do conto. Na primeira hipótese, nada muda. Na segunda, temos duas vias à seguir: b.a) o personagem cara é um personagem que não aparece no primeiro conto; b.b) o personagem ele do primeiro conto é, na primeira parte, o cara desta história, e na segunda - depois do desaparecimento, o que briga na escada - é o ele desta história. Nesta primeira hipótese, nada muda. Na segunda... bom... talvez a perspectiva do primeiro conto mude totalmente...
Eu não me decidi. E tu, depois que leres os dois, por quais opções optarias?

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“Tirei o chapéu pra ti, cara! Bah, tirei mesmo o chapéu pra ti!”
Quem poderia imaginar que isso seria uma ameaça?
O problema é que foi...
Ele trabalhava em um setor, mas era apaixonado por uma guria que trabalhava em outro. Constantemente enviava bilhetinhos pelos colegas dela, dos quais ela nunca respondeu nem um. Tentou todo o tipo de aproximação, mas ela sempre lhe afastou: nunca quis sair para beber, sempre fora ríspida em todas as respostas dadas. Até atravessar a rua quando viu que eles se cruzariam na calçada, ela atravessou.
Por outro lado, o cara em questão se aproximou muito dela. Andavam de um lado para o outro sempre aos cochichos e sorrisos. Ele, assim como todos nós, entendeu que os dois estavam de flerte.
O engraçado é que aquilo seria totalmente – ou nem tanto assim – impossível. O cara era gay, mas ninguém sabia. Por toda a vida, o cara escondeu ao máximo de sua capacidade: como todo o segredo, este fez pressão até ser revelado. Ele e ela eram amigos – realmente mais que colegas – e logo a confiança e a intimidade necessárias para que ele contasse se fizeram.
Logo, estavam de conversinhas pelos cantos, falando sobre os meninos dos outros setores. Por algum motivo, existia aquele estranho “pudor” em falar sobre nós, do setor deles. Mas andavam sempre juntos, durante o tempo todo, falando sobre assuntos ditos femininos, com ele sempre desejando muito mais que fazendo. O problema, o que gerava confusão, era a infeliz mania de esconder quem ele era, de agir sempre como o machão, o comedor.
Um dia, ele teve a certeza que todos nós, sem exceção, tínhamos – a certeza errada que tínhamos. A raiva lhe tomou a face, vermelha como se o sangue fervesse desde o estômago até o cérebro. A frase que proferiu, fria e totalmente calculada, me causou calafrios que ainda hoje sou capaz de sentir... mas que foi totalmente ignorada por ela... e pelo cara.
Dois dias passaram em uma calmaria estranha. Tenho certeza que meus demais colegas que ouviram aquela “saudação” também estavam esperando pelo pior, assim como eu. A questão é que esperávamos que ele quisesse briga, desse uns tapas no cara, ou qualquer coisa assim. O que aconteceu foi pior. Sangrentamente pior. Um belo dia, nenhum dos dois veio trabalhar. Na verdade, nenhum dos três.
A mente do cara despertou de uma única vez; em um momento, vagava pelo limbo da inconsciência, no outro, estava totalmente alerta. Por outro lado, seu corpo parecia não responder à nada. Demorou o que pareceu uma infinidade para perceber que estava vendado e tão bem amarrado à uma cadeira que não era capaz nem mesmo de dar de ombros. Com as mãos presas as costas, logo percebeu que seu acento estava grudado ao chão e até mesmo seus pés estavam presos. Havia panos em sua boca, tão fundo em sua garganta que abafavam qualquer grunhido. Era como estar enterrado vivo, mas em um caixão de proporções relativamente amplas e desconhecidas. Apenas sua respiração demonstrou que estava acordado.
Só percebeu que estava com os ouvidos tampados quando sentiu os imensos e macios protetores de orelhas e, depois, os protetores auriculares serem retirados. Sentiu uma respiração ofegante em sua nuca, contra seus cabelos e um bafo quente em sua orelha quando ouviu uma voz rouca lhe dizer que agora sim eles poderiam continuar.
Fora desvendado, e seu olhar recaiu justo onde ela estava. Amarrada e amordaçada, jogada despretensiosamente em um colchão nu, seus olhos revelavam medo. Ele entrou em seu campo de visão, repetindo incessantemente que agora sim eles poderiam começar. E apenas isso deu certeza de que nenhum mal – pior que ser sequestrada e amarrada – acontecera a ela. Até aquele momento.
Ele ria histérico enquanto desamarrava as mãos dela e as amarrava novamente nas pontas do colchão, e depois com as pernas. Ela lutara com todas as forças, mas ele gargalhava alto e rápido a cada tapa ou arranhão, mas nada parecia surtir qualquer efeito. Logo, ela estava novamente presa, braços e pernas abertas.
Parado entre ela e o cara, ele começa a cantarolar uma música qualquer, intercalando com sua risada insana, e a balançar o corpo para os lados. Em movimentos hesitantes, ele retira toda a roupa numa imitação do que deveria ter sido um strip sensual. Do bolso da calça, antes de abrí-la, tirou um canivete. Com ele, já nu, aproximou-se dela e lhe cortou a roupa.
Ambos nus, o cara, incapaz de desviar o olhar, aperta os olhos. Tenta se concentrar no secume de sua boca, esforçando-se para não ouvir os sons asquerosos que aquele estupro produziria. Fez o que pode, mas não há como se desprender totalmente do mundo físico por mero esforço consciente.
O ato durou mil anos ou mais, os rangidos das molas já gravados eternamente na alma de quem os ouvisse. Ou, logo ele estava à sua frente, rindo. “Eu fiz, viu? Com a minha namorada! Tu não vai roubar ela de mim! Nunca-nunca!”, e gargalhou. Ela chorava por medo, asco e dor; o cara, por pura impotência.
- Tu não viu, né?! – ele mostra o canivete – Pois não devia ter fechado os olhos!
As risadas param, mas a insanidade permanece no sorriso e no olhar dele. O cara chora suas ultimas lágrimas transparentes antes de nunca mais fechar as pálpebras.

Roland - Parte 3

Roland ouviu um guincho. Seu consciente sonolento tentou criar um sonho em torno do barulho, mas seu inconsciente identificou-o como um alerta... Encontrei algo!. Mentalmente, o gaucho acordara e levantara em um único salto. Fisicamente, ele continuava deitado, os olhos fechados (treinados para as pálpebras não tremerem, como costumam tremer enquanto estamos acordados) e a respiração leve.
Os passos não emitiam nenhum som: eram macios demais, totalmente abafados pela areia imóvel dentro da tapera. Entretanto, Roland sentia os movimentos e a respiração da criatura; ela evitava se aproximar do corpo, mas vasculhava com mãos leves, verificando todos os pertences do homem.
Houve um segundo guincho, de longe. O que foi?. A criatura junto do gaucho respondeu. Venham logo!. Com dois gritos. Venham ver!. Todas as guinchadas lembraram muito ao homem o som de roedores, mas aquilo era impossível, já que...
Um segundo entrou e soltou aquele mesmo gritinho que despertou Roland. Era preciso esperar até o último momento. Ele tinha uma cicatriz feia na mão, do indicador até o dedo médio, para lhe lembrar desta pequena regra. Era preciso esperar que todos que tivessem de entrar entrassem e que a emboscada fosse armada por eles para que ele pudesse desarmá-la.
Os dois pareciam juntar as coisas de Roland no centro da tapera quando um terceiro, e último, apareceu. O guincho, dessa vez, mesmo muito excitado, não era de chamado, mas de espanto. Faltava pouco, agora...
Os três reuniram-se em torno do gaucho, guinchando baixo. Certamente discutiam se deviam ou não mexer na mala de garupa usada como travesseiro, pois, com muito cuidado, um deles pegou a cabeça de Roland, enquanto os outros levavam as mãos à bolsa.
O homem ergueu a cabeça no exato momento em que a criatura foi levantar sua cabeça, surpreendendo-os e impedindo qualquer reação. Com o mesmo impulso, jogou o corpo para frente e rolou sobre si, os olhos mirando e as mãos avançando para o facão, ainda não anexado ao monte. Logo estava em pé, armado, de frente à... três ratos??? Não! Roland não conseguia acreditar que...
Numa reação totalmente humana, os três ergueram as patas dianteiras, apoiados apenas nas traseiras, mostrando que estavam totalmente desarmados. O gaucho avançou dois passos, urrando, os braços abertos, a mão livre erguida, o corpo vergando ameaçadoramente contra os enormes ratos, muito maiores que o que comera na ultima noite. A adrenalina fazia o sangue pulsar forte demais nas têmporas para que ele pensassem em caçar. Esperava assustá-los e fazê-los fugir.
Bom, os ratos fugiram... mas não sem antes jogar, com os rabos, arreia em seus olhos. Desviaram por entre suas pernas e pegaram o que puderam com as bocas e caudas do que fora amontoado, enquanto Roland levava as mãos ao rosto, tentando limpar a vista.
O último deles tropeçara no morrinho de objetos, e não havia nem passado da porta quando Roland se virou, os olhos vermelhos e lacrimejando. Correra o máximo que conseguiu, mas pouco havia avançado quando sentiu as mãos do homem lhe levantando do chão. Guinchou por ajuda para os irmãos que se afastavam... e que não voltaram. Se tivesse sorte, eles voltariam para salvá-lo, talvez com o bando todo. Por ora, precisava contar com a bondade de seu “raptor”.
Roland levantou-o até a altura dos olhos, os braços esticados para evitar um possível ataque, depois de sacudí-lo e garantir que havia soltado tudo que tinha na boca e na cauda. Virou-o com ódio, para encará-lo de frente, não sabia bem porque. Mas se arrependeu de tê-lo feito.
O rato tinha lágrimas nos olhos, e o homem foi acompanhando-a rolar pelo focinho que diminuía. Os pelos foram caindo, o rabo encolhendo e as as patas aumentando. Dolorosamente, para quem olhava, os membros se realojaram com um estalo para os lados do tórax e da bacia, enquanto as costas se alongavam.
Se Roland capturara um rato grande, em pouco tempo, o que tinha nas mãos era uma criança de, aproximadamente, nove anos.

MK

Este conto é uma continuação do Lábios da Morte. A ideia era escrever crônicas sobre Os 7, mas não sei se sai...

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Ela atravessou a rua olhando para os lados. Não que aquela hora da noite, com a saída da escola, ela estivesse preocupada com automóveis. Seu olhar vasculhava as sombras, procurando ver algo que seu coração aprendera a esperar. Ele viera acompanhá-la todas as noites, desde o começo do semestre. Nem sempre na mesma hora, nem sempre no mesmo lugar, mas invariavelmente todas as noites.
O coração de Catherine ficava apertado com a proximidade do fim da aula, todos os dias: tinha certeza de que ele não viria, mesmo ele tendo dado a sua palavra e tendo sempre honrado-a. A cada dia, com a expectativa aumentando conforme as horas passavam, ela tinha certeza de que fizera alguma burrada na ultima noite, de que falara alguma besteira, de que ele perdera o interesse nela. O que era pior é que ela nem sabia que tipo de interesse ele tinha por ela. Eles conversavam o caminho todo, sobre tudo... e sobre nada.
Kattie morava a pouco mais de três quilômetros da escola. Era longe o suficiente para que ela pegasse uma lotação, mas era perto o suficiente para que a empresa de transporte público achasse desnecessário um micro-ônibus naquele trecho. Era longe o suficiente para que uma jovem sozinha fosse assaltada – e coisa pior –, mas era perto o suficiente para que eles tivessem que, aparentemente, cortar suas conversas no meio.
Ele não havia aparecido ainda, quando ela cruzou a rua, ladeou meia quadra e virou a esquina. Seu coração pulsava nas têmporas e ela repetia mentalmente que ele não viria. Estava começando a ficar com medo a) por ele, pois poderia ter acontecido alguma coisa grave desde que se viram pela ultima vez; e b) por ela, pois poderia acontecer alguma coisa grave antes que ela conseguisse chegar à segurança de seu lar. Logo à frente, ela precisou atravessar outra rua, olhando para todos os lados, literalmente.
Ela chegou à outra esquina já mentalmente – mas não emocionalmente – conformada. Puxou a bolsa mais contra o próprio corpo, submergiu o que pode nas sobras e acelerou a caminhada. Passos se aproximaram e ela tentou baixar a cabeça, na tentativa instintiva de passar despercebida. Tentou. Alguém segurou firmemente seu queixo e ergueu seu rosto para cima, enquanto parava à sua frente. Seus olhos se enxeram de lágrimas de pavor antes que ela visse quem lhe abordava.
- Tu me assustou – ela disse, com um arrepio. Eles nunca haviam se tocado, não pele com pele, e isso a assustou, a frieza da pele.
- Desculpe – o tom dele era doce, mas não escondia certa frieza – como a de sua pele – que ela acreditava ser apenas impressão dela.
Catherine o perdoou no momento em que o reconheceu, ele não precisava se desculpar.
Eles percorreram o caminho de sempre, conversando as amenidades de sempre. Ela não lembrava direito de como se conheceram, nem se importava muito. Tecnicamente, ele sempre esteve ali para ela, sempre a acompanhou naquelas ruas escuras, sempre a levou para casa, desde o começo do semestre... ou antes? Ela tinha mesmo certeza de que ela o conheceu apenas este ano? Ela podia afirmar, com certeza, que ele não a levava pela mão, da escola até em casa, desde pequena? Também não importava. Nenhum pouco.
À uma quadra de casa, Kattie parou. Eles nunca haviam mudado o trajeto, mas ela também nunca vira o rosto dele direito: a pouca luz dos postes do caminho sempre omitiam, de alguma forma, a face dele. Pouco antes, quando se encontraram naquele dia, eles haviam se tocado pela primeira vez... talvez fosse aquele o dia de muitas primeiras vezes para eles.
Ela atravessou a rua em direção à uma pequena praça. Ele não a seguiu, mas Catherine virou-se e lhe sorriu, convidando-o. Ela já estava sentada em um balanço quando ele “tomou coragem” e a seguiu. Os três postes iluminavam com uma luz forte e branca o centro da praça, transformando as ruas à volta em sombras que aqueles postes não conseguiam dissipar.
A luz banhou seus pés e subiu por suas pernas até lhe revelar por completo... ou quase. Ele vestia-se todo de preto; usava allstars, jeans desbotados e uma camiseta larga e ilustrada com o busto de Darth Vader. Mas quando parou à sua frente, seu rosto estava contra a luz – proposital (não que ela soubesse) e levemente (não que ela percebesse) abaixado – e imerso na sombra. A única coisa exposta era seu sorriso, bonito e malvado... não de safadeza, mas de maldade. E ela sentiu um calafrio com aquela expressão.
- Malkan... – mas ele a interrompeu: sentando-se no balanço ao seu lado, levou o indicador aos lábios dela.
Ele curvou seu corpo, aproximando o rosto – em fim completamente iluminado, e que por si só a fez perder o compasso da respiração – do dela. O olhar de Kattie estremeceu, mas ela permaneceu quieta, esperando. Malkan se aproximou mais, seus lábios a pouca distância dos dela. Ele se aproximou mais – o que a fez prender o ar – e desviou o rosto, mergulhando-o contra seu pescoço. Ela não teve tempo de perder o fôlego.
A dor rápida e marcante, daquelas que permanece sob a forma de uma coceira ou algo assim pelos dias próximos, foi logo substituída por uma sensação que Catherine nunca havia experimentado. Era como se não houvesse nada além deles... da boca dele em seu pescoço, dos braços dele em sua cintura e nunca. Ela percebeu que ele a havia tirado do balanço e que estavam em pé, mas ela se sentia flutuar.
Kattie gemeu baixinho com o prazer que lhe arremeteu a estranha sensação proporcionada por seu sangue saindo de seu pescoço, um filete quente e gostoso escorrendo lento por ele. Seu corpo estremecia e ela se sentia em paz...
Foi quando as visões começaram. Ela viu, pelos olhos dele, os corpos das meninas com as quais Malkan se banqueteara. Todas elas aparentemente da mesma idade que ela, com cabelos aparentemente da mesma cor e, apesar da luz... Oh!, droga, todas tão parecidas com ela!
Malkan a soltou, empurrando-a pelos ombros, dando vários passos para trás, tropeçando e perdendo o equilíbrio. Entorpecida, Kattie sentiu a cabeça girar e teve de apoiar-se na estrutura do brinquedo para não cair. Ele a olhava com uma expressão de pavor, e ela sorriu amarga e mentalmente: aquele deveria ser um joguinho dele, uma forma de dar esperanças à vítima de que talvez ela, em vista das outras, sobreviveria; talvez o sangue fosse mais gostoso quando temperado com uma desilusão assim. No mesmo instante em que pensou nisso, ela soube que não, que a reação dele era outra coisa... a reação dele era...
O vampiro apontava um dedo trêmulo, sua boca suja com uma única listra em um canto balbuciando uma palavra aleatória (?). Você. Silenciosamente, ele a apontava e deixava claro que era ela... que...
Então Catherine se lembrou. Não como a gente lembra de uma brincadeira da infância, do primeiro beijo, ou do dia de ontem, por mais recente que pareça em nossa memória. Lembrou como nos lembramos quem somos, nossos nomes, onde moramos, à que núcleo familiar pertencemos e que família formamos, no exato momento em que acordamos. Ela se reconheceu. Mas não como nós nos reconhecemos... talvez como alguém com amnésia é capaz de reconhecer as próprias mãos ou o próprio rosto. Como se o corpo (ou a alma) tivesse uma memória a parte – e melhor – de a da mente.
Ela se viu de mãos dadas com ele, andando pelas ruas, voltando... voltando de algum lugar. Eles sorriam, conversavam. Ele a chamava por outro nome, mas que era o seu nome naquele momento, e lhe acariciava o rosto. Ela também se lembrava de vê-lo do chão, pela ultima vez antes de nunca mais enxergar, e de como ele parecia apavorado olhando dela para algo que fazia sombra à sua frente.
Kattie olhou o vampiro à sua frente com aquela mesma expressão de pavor. Chamou-o pelo nome, e as pernas de Malkan fraquejaram, deixando-o sentado na areia. Catherine se aproximou, repetindo aquele outro nome dele. Ela abaixou-se, acarinhou seu rosto e lhe disse que estava tudo bem... que ele sabia o que fazer, e que ficaria tudo bem...

Asas Quebradas - Episódio 1

Mikail suspirou fundo. Havia trabalhado o dia todo juntando lenha para os velhos estalajadeiros. Chegara na cidade ao amanhecer sem dinheiro algum para pagar sequer um prato de comida, quanto mais um quarto para uma noite e... ah!, ele precisava (muito) descansar de verdade. Logo, oferecera-se para cumprir algum trabalho, qualquer trabalho, que a pequena estalagem da cidade considerasse como válido para, ao menos, uma pernoite e um prato de comida.
Os proprietários eram um casal de idosos, cujo o velho tinha de buscar relativamente longe a lenha para o inverno que se aproximava. Mesmo desconfiados, aceitaram a proposta, desde que ele realmente trabalhasse primeiro, para depois ser “pago”. No fim das contas, a velha lhe levara meio pão, um quarto de queijo e uma fatia grossa de pernil logo depois do meio dia; e o velho lhe chamara para dentro antes do pôr-do-sol, resmungando que ele empilharia o bosque todo no pequeno estábulo se não parasse logo.
Na chegada, eles haviam ficado – à pedido de Mikail, e com prazer dos velhos – com sua espada e seus outros poucos pertences, exceto o machado de pedra. Agora, a machadinha rustica estava em sua cintura, camuflada pelo longo colete de couro que – assim como a calça, ambos que ele mesmo fizera – os velhos lhe pediram para vestir. O que foi muito bom – estar vestido sem as peles soltas, e com uma arma pequena –, assim, ele passara despercebido quando o bando entrou.
Chegaram chutando a porta e entraram falando alto e rindo. Mikail já não foi com a cara deles na chegada, eram espaçosos demais. De qualquer forma, quando olhou para o velho, sentiu que realmente tinha motivos para não morrer de amores por eles. O estalajadeiro tinha um olhar de pavor para os homens, e um que implorava por ajuda para o homem que lhe prestara ajuda com as lenhas.
Eram cinco, ao todo. Os homens eram grandes demais, com pelos demais, fedorentos demais... E mal-educados demais. Chutaram bancos vazios e derrubaram quem não levantou a tempo das cadeiras. Um deles arrotou alto, enquanto o homem à frente do grupo bateu forte o punho fechado contra o tampo do balcão.
- Uma cerveja – urrou, com um sorriso irônico, mexendo com a outra mão – e todas as moedas, por favor – e puxou uma adaga... que não chegou a apontar para o velho.
Um som parecido com o do punho do homenzarrão impediu que ele ameaçasse o estalajadeiro. O grupo de assaltantes virou-se todo – assim como Mikail, o velho, e as pessoas que não fugiram ainda – e viram... Na mesa mais às sombras, estivera sentado alguém que, antes não fora visto, e agora estava em cima da mesa, apontando uma espada para o invasor mais próximo.
O bando começou a rir, e rir alto. A espada apontada para eles era curta... tão curta quanto a estatura do desafiante. Mikail, por outro lado, não viu a menor graça, mas uma boa oportunidade. Desferiu um golpe certeiro com o lado arredondado da pedra de seu machado contra o queixo o líder. Outro “som de punho”, e quem ainda estava no salão pode ver o homem desequilibrar-se, o corpo pender para trás quando a cabeça foi jogada para cima, e dar dois ou três passos em falso para trás.
O homenzinho em cima da mesa saltou para o meio da pequena taberna, a espada em punho apontada para o grupo. Mikail não pode observar direito, estava ocupado demais defendendo-se e atacando três dos homens, mas estava certo de que o baixinho se saia bem. Era visível que manejava bem a espada.
Já não havia mais clientes. O velho estava abaixado atrás de seu balcão, a velha atrás da porta. Ambos espiando, ambos apavorados.
O som de metal batendo – ricocheteando? – era alto, mas não o único. Havia os sons secos contra a madeira dos passos de todos, e das quedas por cima das cadeiras e mesas. Da mesma forma, havia os constantes sons como os de tapas, sempre que Mikail ou o espadachim acertavam os bandoleiros. O bando atacava com as lâminas de suas adagas e espadas curtas – armas longas seria uma desvantagem, em um local tão pequeno e tumultuado –, tentando cortar, rasgar e sangrar seus oponentes. A dupla, por outro lado, não: Mikail atacava com seu machado como se ele fosse uma clava, ignorando a lâmina por completo, e o pequenino batia com o lado da lâmina e o cabo da espada; era consideravelmente mais demorado, por outro lado nenhum dos dois mataria sem necessidade.
E, por incrível que parecesse, não era necessário. Os homens estavam em maior número, e eram muito mais fortes, mas eram lentos, e seu tamanho não lhes permitia mover-se adequadamente em um lugar de teto “tão baixo”. O espadachim desviava-se com facilidade dos golpes desferidos contra ele, pulando para os lados, abaixando-se e rolando por demais das mesas e das pernas, atacando sempre por um lado indefeso. Mesmo os dois que lhe enfrentavam eram pário para seus rápidos evasão e contra-ataque. Mikail não ficava longe da vantagem, e mesmo não sendo possível desviar da maioria dos ataques, conseguiu tirar vantagem da quantidade de inimigos que lhe atacavam, já que dois só podiam atacar de uma vez, e suas lâminas geralmente se cruzavam.
O homenzinho gritava, alegre, atacando e desviando. O combate lhe era prazeroso. Mikail, por outro lado, não se sentia bem. Conflitos como aquele faziam se sentir como alguém insignificante: de que adiantava saber lutar quando não se tem porque?
Mas logo estava acabado. Os homens caíram, um a um, até sobrar só o “arrotador”. Vendo-se sozinho, este tentou fugir. Até chegou à porta, correndo, mas só a abriu e um machado de pedra, arremessado, lhe acertara a nuca.
- Matem! Os matem! Por favor! – gritava o velho, saindo de trás do balcão. Ele implorava, dizendo que isso só os faria voltar mais furiosos ainda da próxima vez.
Mikail negou-se à fazê-lo. O pequeno espadachim também. Mas chegaram ao consenso em amarrar os cinco e levá-los à pequeníssima praça da cidade. Lá, os moradores decidiram o que fazer, e fariam o que tivesse que ser feito. Nenhum dos dois falou enquanto amarravam ou arrastavam os homens pelas ruas pavimentadas com tijolos de pedra. Mikail olhava aquela urbanização tão estranha, lembranças de outros tempos que mal passaram, mas já pareciam tão, tão distantes.
Nem bem cinco anos antes, aquela cidade era um importante ponto de parada para as tropas do Império e para toda a sorte de mercadores, fossem para onde fosse (ou praticamente isso). Durante muito tempo, ela fora totalmente urbana – estalagem, ferraria, estábulo, mercearia, etc. –, mas já era possível ver as primeiras tentativas em uma agricultura ou pecuária. Era triste ver as pessoas desiludidas, assustadas e desnorteadas, alienadas sem saberem direito porque, vivendo por obrigação da forma que for possível. A cidade se consumia pelo tempo, já que ou a população era velha demais para a preservação, ou estava cansada demais da “roça”. Sem esforço, era possível ver a grama nascendo por entre as pedras do calçamento, combatida apenas pelo – nem tão – constante ir e vir das pessoas.
Mikail e o espadachim apenas deixaram os capturados na praça e retornaram à estalagem, onde foram recebidos pela velha, que dizia não ter condições de passeios desnecessários – mas seus olhos revelavam medo, muito medo. Os três se olharam, cada um achou que os outros dois pareciam acabados; Os sorrisos que trocaram foram amarelos e sem graça, o que foi engraçado e lhes provocou risinhos verdadeiros. Aquele dia deveria ser dado por encerrado. O mais breve possível.