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domingo, 14 de outubro de 2012

Roland - Parte 5

A bruja sabia tudo que ele tinha feito, cada passo que havia dado em sua mente. O que era estranho, porque ela não parecia sábia o suficiente para sequer conhecer aquilo. De qualquer forma, ela não mentia, não havia mexido em suas memórias: as caixas estavam caídas das prateleiras, mas não abertas.
Era desconfortável. Muito. Principalmente porque ele estava deitado em uma cama. Uma cama! Roland não era criativo, então não lhe passava pela cabeça qualquer justificativa para estar ali.
Porque, ele queria saber. Porque sim, era a resposta dela. Ele tentara iniciar uma conversa, de forma respeitosa, chamando-a por velha mãe. Ela deu um sorrisinho amarelo, de canto de boca, e lhe interrompeu dizendo que não era tão velha assim. Ele entendeu imediatamente: ela era uma jovem poderosa, não uma velha sábia. Ela era inconsequente, não calculista. Ainda assim, ela era perigosa demais.
- Eu sei o que tu pretendes. O hombre en negro me avisou sobre ti.
Roland calou-se. Qualquer coisa que dissesse agora seria usado contra ele. Olhá-la sem frieza deveria bastar.
E bastou.
- Sei lo que vieste hacer aquí, pistoleiro – o gaucho (não) estremeceu ante aquela palavra – pero, el viejo no te disse o todo. Se dissesse a verdade, tu no virias até aqui. Se ele mentisse, tu perceberias y también no virias.
O homem tentou levantar-se; aquele era um bom momento para estarem à mesma altura física. De onde estava, ela facilmente se sentia superior, com ele em uma posição de fragilidade. Tentou, mas não conseguiu. A dor de cabeça, ao acordar, era tão intensa que ele acreditou não sentir dores pelo restante do corpo. Agora ele percebia que, na verdade, não sentia nada do pescoço para baixo.
Procurou não demonstrar, mas já era tarde.
- Machucaste as costas. No esperava ferir-te, pero... Bueno, cuidarei de ti, no voy a salir de tu lado hasta que te recuperes – ao seu lado havia uma mesinha. Sobre esta, uma cubuquinha que a bruja tomou nas mãos – Beba, te fará melhorar rápido.
Roland pesou as possibilidades. Se quisesse matá-lo, já o teria feito. Se quisesse seus segredos, teria buscado em sua mente quando pôde. Com um sorriso de agradecimento, sorveu da primeira colher. A cada colherada ganha, sentia-se mais leve e sonolento, ao mesmo tempo que sua dor parecia desaparecer. Não saberia precisar se sonhava ou não ao ouví-la raspar a colher no prato.
Quando acordou, ela estava novamente ao seu lado. Decidiu manter a noção de tempo. Quando tomou a sopa a primeira vez, era dia. Agora, noite. Conversaram amenidades, e ela lhe serviu outra sopa. Apenas pelo cheiro ele foi capaz de perceber que eram diferentes. E na terceira vez que despertou era noite. Quis crer que era a mesma noite, mas seu estômago roncava de fome.
Tentou manter a cabeça clara, mas parecia impossível. Acordava ora de dia, ora de noite, por vezes consecutivas à noite, por vezes, ao dia. Só pôde ter certeza que a primeira sopa, a mais apimentada, lhe permitia dormir menos, já que não acordava com tanta fome; enquanto a segunda, de gosto mais acridoce, lhe fazia dormir mais.
Os sonos não eram tranquilhos, nenhum pouco. Eram tomados de pesadelos terríveis e lembranças piores ainda. E acordado, suas esperanças não eram melhores. A bruja parecia cada vez mais feliz por sua estadia ali, sua total fragilidade e incapacidade. Talvez ela não estivesse tentando curá-lo. Apenas querendo mantê-lo vivo, como confortável companhia que nunca a deixaria.

*

Quando abriu os olhos, ali estava Gabrielle. Roland não tinha certeza, mas ela deveria ter pelo menos 17 anos quando ele nascera, ainda assim não conseguia lembrar dela com a aparência de quarentona que deveria ter quando moço. Para ele, a aparência de sua mãe seria para sempre a de uma moça de 15 ou 16 anos. E ali estava ela, lhe sorrindo.
Estavam no meio do pasto da estância de seu pai, mas não havia qualquer animal. Caminhavam, como cansaram de fazer, próximo à invernada, mas não havia mais nada. Animal, plantação, grama... nada em lugar algum à vista. Não era como Roland se lembrava, mas era como imaginava que tinha ficado depois de tudo aquilo. Não conversavam: os lábios dela estavam fixos naquele sorriso que fazia seu filho pensar em morte; mas ainda assim a voz dela ecoava por seus ouvidos como uma canção de ninar há muito deixada para trás e que só se é capaz de recordar palavras soltas. A Torre, os Doze Guardiões, a Alma Farrapa e o coração doce da prenda escolhida.
Quando virou o rosto novamente em sua direção, não era mais sua mão ao seu lado, mas Susana. Roland lembrava de seu rosto quase nitidamente como era no dia anterior à fogueira. Ele era incapaz de lembrar, como se alguém tivesse lhe tomado à força essas memórias, de que fogueira era essa, mas tinha certeza de que sua amada havia morrido em decorrência dela. O gaucho quis tocá-la, mas não pode: seus braços pareciam congelados junto ao corpo, ao vislumbrar em seus lábios rosados o mesmo sorriso de morte de Gabrielle.
Desviou o olhar, e já não estavam no campo. Roland havia descrito vezes mil à Susana sobre onde estavam agora, e quisera muito tê-la levado lá. Era a Sala do Tempo de sua mãe: um amplo salão construído para ser ventilado e fresco nos dias quentes, mas conservar toda a caloria produzida pelo grande fogão à lenha – a segunda peça mais importante dali – nos dias frios. Seus pais costumavam receber os amigos mais íntimos nos tempos de paz, e foi onde Bento foi aclamado como o general que os guiaria em defesa contra as investidas do Império.
Roland e Susana olhavam para uma tapeçaria antiga que decorava toda a parede norte: a Árvore. Gabrielle costumava contar sobre a linhagem dela – e dele –, mostrando os nomes bordados e declamando os feitos. O gaucho sempre desejara declamar ele próprio, pela primeira vez, cada um daqueles longos e belos poemas à sua prenda, quando lhe tirasse do Prata, já casados. Agora estavam ali, tantos anos depois de sua morte, e ele não era capaz nem de olhá-la. Não precisava, de qualquer forma: a voz dela sussurrava uma milonga que ele conhecia bem, sobre tudo que eles também sentiram juntos, sobre como foi doloroso perdê-la para a Eternidade e de como ela o amava ainda assim.
Roland acordou chorando. A bruja lhe olhava com um quê de surpresa, mas ele não tentou disfarçar. Estava satisfeito com a certeza de que não precisara narrar à Susana os feitos de seus antepassados: ela já os sabia de cor pelos lábios de Gabrielle.

*

O gaucho estava gritando “avante!”, já no meio de um campo de batalha. Tentavam atravessar a divisa da Província quando foram emboscados pelos Imperiais. Os lanceiros cobriam a retaguarda com mais honra e bravura que os soldados treinados que Roland liderava pela frente. Estavam cercados, e sem grandes chances de fuga caso surgisse uma oportunidade. Ele morreria lutando, assim como seus lanceiros. Seus amigos também, diferente de seus soldados que pareciam procurar pelo momento certo de mudar de lado.
O problema é que, diferente de todos os demais dispostos à morrer, Roland sobrevivera. Os enfrentamentos costumam ser confusos enquanto ocorrem, e costumam ficar mais e mais desconexos conforme o tempo e a memória trabalham sobre os gritos de dor e raiva, sobre o som tilintante do metal contra metal e o som abafado e úmido do metal contra a pele e a carne, sobre o calor da movimentação das muitas pessoas e o calor do sangue que se acumula no mais pequeno arranhão e que jorra do mais profundo ferimento, sobre o estrondo das armas de fogos, sobre o cheiro ferroso do sangue e o cheiro de pólvora queimada.
O problema é que, diferente de todos os que queriam fugir e sobreviver, Roland. Cuthbert estava quase à seus pés, com um olho fechado enquanto o outro, fora da órbita, parecia lhe encarar. Seu melhor amigo segurava o Chifre firmemente na mão esquerda, enquanto a arma já havia escorregado de sua mão direita. O gaucho não consegue se lembrar de ter sequer se abaixado, mas o Chifre estava em seus pertences quando chegou em casa. Alaide estava encoberto por alguns lanceiros; morrera protegendo um deles que fora gravemente ferido, morrera sendo protegido pelos outros cinco que formaram um círculo em seu entorno. De João, sobrara uma massa de carne, osso e tecido pisoteada pelos cavalos Imperiais. Não se lembrava de ter olhado tempo suficiente para os rostos de seus mortos, mas apostaria sua vida de que na face de cada um dos três estava o sorriso de morte de sua mãe.
E Roland estava sozinho, no meio de mortos por todos os lados. Já não havia diferença entre cor de pele, ou mesmo entre homem e cavalo. Seus sangues se misturaram no chão e seus corpos apodreceriam lado a lado pelo correr dos dias. Aquela era a última batalha: o Império havia ganho a guerra, e o gaucho teria apenas tempo de partir novamente antes de tomarem a Província. Não deveria ter ocorrido, era contra o Tratado... mas ninguém teria ouvido, aquilo era apenas a demonstração de que o documento de nada tinha valor aos Imperiais.
Quando acordou, recebia a estranha sopa, na boca, pela bruja. “No fim, te apiedaste de mim”, disse, e sua resposta foi o sorriso de morte num rosto muito mais novo do que Roland lembrava naquela mulher.