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terça-feira, 13 de março de 2012

Asas Quebradas - Episódio 2

Havia amanhecido à pouco tempo. Mikail descruzou as pernas e esticou os joelhos. Com um suspiro, abriu os olhos e observou calmamente a poeira que dançava calmamente no raios de sol que entravam pelas frestas da janela. Levantou-se e alongou-se até ouvir cada junta estalar. Sentia-se bem: há muito não era capaz de passar uma noite tão tranquila, sem qualquer barulho que lhe despertasse. Quando desceu, encontrou os velhos já atrás do balcão e o espadachim à uma mesa.
- Bom dia! – disse o pequeno – Me daria a honra de uma companhia no desejum? Eu pago.
- Claro, porque não?
- Não. É por conta da casa. – interrompeu o velho – Vocês fizeram um imenso favor para toda a cidade. Algo que nunca poderemos pagar como deveríamos. Aqueles nos roubavam a anos, sem que ninguém pudesse impedi-los – e sumiu pela porta da cozinha, resmungando baixo.
Mikail não se sentiu lisonjeado, mas o espadachim sorria por detrás do chapéu de aba larga. Agora, pensando nisso, Mikail percebeu que seu companheiro de mesa usava roupas próxima ao dos povos bárbaros, mas de alguma forma estranha aos olhos. Observando-o com calma, avistou as botas quase do mesmo tamanho das suas.
- Achei que vocês tivessem desaparecido junto com o Império – disse Mikail
O robit sorriu e retirou o chapéu. O rosto era marcado por duas feias cicatrizes.
- Acho que vocês sofreram mais – “Tu não sabe o quanto”, pensou Mikail – Sou Italus.
- Mikail.
- Fique sabendo que és viajante também. Estás indo para onde?
- Não sei – respondeu, as costas começando a arder –, só caminhar para mim está bom.
- Parece que estás fugindo – e riu alto
- Acho que só não tenho nada que me prenda a qualquer lugar... – respondeu Mikail, sentindo as costas como se lavadas por água fervente. O rumo daquela conversa não lhe agradava.
- É, sei bem como é isto. Tudo o que tinha se foi com o Império. Agora, eu vivo de acordo com a minha lâmina, e isto me serve – Italus tinha um olhar perdido enquanto falava, Mikail se perguntou quantas lembranças aquele olhar escondia e, de repente, suas costas não incomodavam mais.
A velha senhora chegou à mesa, sorrindo, com uma bandeja quase grande demais para ela. Serviu os dois, que agradeciam a cada artigo que era posto à mesa, até que ela terminou e saiu corada. Passou pelo marido dando risadinhas e sussurrando algo sobre a educação dos homens.
Os dois comeram não tão em silêncio quanto Mikail gostaria. Para o andarilho, as refeições eram sagradas, um dos momentos diários de reflexão e introspecção... e para isto era necessário silêncio. Algo que certamente não havia, com Italus falando sem parar. Por outro lado, Mikail fora obrigado a reconhecer que ouvir o robit falando lhe agradava; era bom conhecer com quem se dividia a refeição.
Italus contava sobre a cidade onde nascera, sobre como fora sua educação nas mãos dos pedagogos aqueus, como fora seu treinamento com a espada – sozinho e em fila, mais ofensivo e mais defensivo. Dialogou com a – gigantesca em suas mãos – caneca de suco de uva erguida à meio caminho da boca sobre como sua família se endividara e que fora escravizado para pagar a dívida no lugar de seu pai, já velho e doente – mas ainda com punho forte o suficiente para manter seu patriarcado. Contou, com a boca cheia de pão, como aprendeu as regras dos coliseus e em como ganhara fama o suficiente para, mesmo depois de ter sua dívida quitada, permaneceu nas arenas até a Invasão. E, por fim, com lágrimas, reviveu cada momento da batalha final do Império e sua inevitável derrota.
O coração de Mikail estava com o de Italus até o final da história, que fora neutra a maior parte do tempo. Não houveram situações cômicas como há nas histórias dos velhos. A única emoção presente foi a tristeza, no fim de seu relato, mas não por saudosismo do tempo que se fora, mas pela tristeza acarretada pela morte de todos seus entes queridos e amigos. Isto, por óbvio, não saíra da boca de Italus, mas Mikail o soubera de qualquer forma. Era em seus mortos que Italus pensava enquanto falava sobre a Queda... e fora por eles que Mikail chorara discretamente.
O andarilho não contou sua história. O robit não perguntou. Depois dos longos anos resumidos em poucos minutos, ambos terminaram o dejejum em um silêncio desagradável, incômodo. Era desagradável os sentimentos desprendidos por Italus, e era pior ainda saber que qualquer outro não os teria captado.
Sentados, em silêncio, Mikail se perguntava sobre os seus laços, sobre tudo o que lhe fora tirado e que ele já não mais fazia ideia... se é que um dia fizera. Se perguntava como seria sua vida hoje, se nada daquilo tivesse acontecido; se o destino teria sido diferente, ou se tudo seria exatamente igual. Se ele estaria sozinho, mesmo cercado de parentes, ou se estaria – de qualquer forma – na estrada, fugindo, de um jeito ou de outro, de seus consanguíneos e/ou conterrâneos.
Pensar no destino que lhe fora negado não era um alento, ao contrário, era apenas mais uma forma de autoflagelo tão comum contra si mesmo, e ao mesmo tempo tão inevitável... Tão... agradável... pois era a única maneira que tinha de forçar sua mente a lembrar-se dos rostos das pessoas que lhe cercavam, que lhe cuidavam. Lembrar de imagens que o tempo insistia, cada dia com maior intensidade, a apagar, a dissipar, desfazer.
Tempo... aquele velho titã despedaçado e aprisionado no mais profundo limbo e que ainda assim era forte o suficiente para desfazer a vida dos homens e das mulheres como se fossem todos simples brinquedos, insignificantes brinquedos. Tempo... ah!, como Mikail o odiava...
A velha veio com seus passos incertos e hesitantes recolher a louça, e Mikail levantou-se rápido para ajudá-la. Ela agradeceu dizendo que não precisava se incomodar, mas o andarilho insistiu e, acompanhado do robit, seguiram a velha que nada levou nas mãos. Depois de ter o agradecimento tímido da velha, era inadiavelmente hora de ir. De novo, o Tempo lhe empurrando para onde apenas ele próprio sabia para onde.
À porta, o casal de velhos lhe agradeceram por tudo, e Mikail desejava que o resto da cidade ainda dormisse até que estivesse bem longe dali. Com seus poucos pertences às costas, o andarilho apertou a mão do robit e partiram, um para... o mesmo lado que o outro?!
Olharam-se e riram, Mikail sentindo uma graça a tempos não sentia.
- À floresta?!
- À floresta.
- Então nos faremos companhia por mais algum tempo, meu caro humano?
- Creio que não me importaria.
- Quem não quer a companhia de um petisco em uma floresta de horrores gigantescos, não?!
E Mikail sentiu dissipar-se um pouco de toda aquela angustia que circundava seu coração.