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domingo, 6 de janeiro de 2013

Troca de Olhares

Conto em voz feminina

*

Ele estava me olhando, tinha certeza. Tomei o cuidado de que estivesse: arrumei o biquíni para chamar sua atenção. Ele era hetero. Eu duvidei que fosse, mas ela me garantiu que sim. E estaria duvidando se ele não estivesse tentando disfarçar que estava me olhando.
Eu tirava e colocava e mexia na blusa aberta que vestia, fazendo com que nunca a mesma parte da minha pele ficasse aparecendo. Queria jogar com ele, com a cabeça dele. Ela tinha essa mania de gostar, de se aproximar de heteros. Dizia que alguns eram legais. Mas não eram. Eram todos nojentos, asquerosos, pervertidos. E iria provar a ela.
Mas ele disfarçava bem seu olhar. Só soube que ele estava olhando (e disfarçando) porque dei a sorte de cruzar olhar com o dele. Era um olhar intrigado, interessado, que eu pegava quando já estava subindo em direção à minha nuca, mas que percorria a maçã do meu rosto, já que me virara, e batia contra o meu. Ficava como se estivesse conversando com os outros, ninguém percebeu que era para ter certeza de que ele me olhava.
Ele olhava meu rosto, buscava por meus olhos parece que somente pelo prazer de manter nossos olhares cruzados. Mesmo depois de molhada, salgada e com o biquíni soltinho, ele me olhava nos olhos quando falava comigo. Olhava nos meus olhos, sempre que podia.
Eu sabia que ele havia me olhado, me cuidado. Mas não estava mais acontecendo. Tinha certeza que ele acompanhara o movimento do meu corpo, como minhas nádegas e meus seios subiam e desciam conforme eu caminhava. Certeza de como ele percebeu bem como eu era uma falsa magra: bem acinturada, com as costelas marcando, mas de seios grandes, bunda e coxas médias. Ele havia me olhado, mas eu perdi o encanto... Como?
Ele conversava normal, quase parecia gente. Mas eu sabia que não era. Quase era capaz de me fazer crer na humanidade em seu olhar. Quase...
No caminho, eu tinha certeza de que ele havia esquecido de mim. Só que eu não desistiria fácil, queria meu brinquedo, minha diversão. Queria ir à forra.
Entramos em casa rindo, e ele já nem se referia mais a palavra a mim. Não tínhamos assunto, e ele não tinha o que me falar, diretamente. E, consciente disso, ele não forçava a barra. Por algum motivo ele queria me convencer de que era um cara legal, mas não iria. Demonstrando ser inconveniente ou não, ainda assim ele era inferior.
Sentada na cama, enquanto eles se organizavam, senti a minha garganta seca. Tirei uma cerveja da caixa – que ele levara e trouxera da praia – e bebi vários goles. Precisava pensar. Queria vê-lo humilhado no meio da gente. Queria que ela visse que nenhum desses tipinhos presta. Foi quando alguém falou (a coisa mais lógica do mundo) em tomar banho. Me ofereci, quase me atirei na frente dos demais. Era a oportunidade perfeita.
Mal me sequei; me enrolei na toalha e saí. Meu cabelo pingava, deixando um rastro pelo chão. Passei de vagar, não precisava esconder nada agora. Quando abri a porta do quarto, ele já estava me olhando... nos olhos. Sustentei o olhar, deixando-o o mais interessado possível. Queria ele nas minhas mãos.
Só desviei os olhos para arrumar a toalha. Quando voltei, com um sorriso no canto da boca, ele ainda estava me olhando nos olhos. Meu sorriso safado pareceu não afetá-lo. Só então me dei conta de quão pesado era seu olhar, quão profundo eram seus olhos. Seu rosto estava limpo de qualquer expressão, como se ele nunca tivesse tido qualquer sentimento: não haviam marcas do tempo, linhas, nada.
Suas mãos estavam entrecruzadas, apoiando o queixo. Sua alma parecia estar perdida em algum canto inacessível. Mas certamente ele estava consciente, presente, atento. Seus olhos se mantinham fixos aos meus, mas era como se não perdessem qualquer movimento meu. O quarto era minúsculo, e estávamos em cinco, contando com ele. Meus passos lerdos pareciam cuidadosos aos olhos dos outros, mas deveriam parecer tentadores aos olhos dele. Só que ele não desviava o olhar.
Ela estava enrolando um baseado, logo estariam todos chapados, exceto eu. Com outra toalha, comecei a secar o cabelo. Queria matar tempo. Ela sorriu pra ele: “esse é um pedaço da minha vida que não comentei contigo”. “Eu suspeitei”, ele respondeu. Havia dado aquela mesma resposta quando ela comentou de nossas pretensões de ir à uma festa LGBT. Novamente, ele estava tentando bancar alguém que naturalmente não era. Que nenhum desses nojentos era.
O cigarro passou pelas mãos dela e dos outros dois, mas não chegou às dele. Ele mentia bem. Já passara o segundo baseado, o terceiro... Ninguém mais prestava atenção em mim, quando tirei a toalha. Ele me olhou. Por cima do ombro, o vi vasculhando visualmente dos meus calcanhares até meu pescoço, e então subir, novamente, pelo meu rosto e terminar em meus olhos.
“Tu não fuma”, perguntei. Sem desviar aquele maldito olhar, ele balançou a cabeça em negativo: “e tu?”. “Eu não, acho fútil”. Ele sorriu. Seria um sorriso bonito, não fosse por ser de um verme.
“Alguém sabe onde está minha bolsa rosa?”, perguntei. “Em baixo da cama”, ela respondeu, rindo, tragando o quarto. Foi quando ele prontamente se abaixou, puxou a bolsa e me entregou. O restante fumou o quinto cingarro, enquanto eu me maquiava. Já havia perdido as contas de quantos haviam queimado quando precisei de ajuda.
“Mano, dá uma mão aqui? Senta aqui e segura o espelho pra mim”. Mas aquela bicha só me olhou. Achei que era pelo tampo da caixa estar molhado. Ele achou o mesmo, e me alcançou sua camiseta para secar a tampa. “Vem cá, mano, senta aqui, por favor”, só que aquela bicha começou a rir, pegou o bagulho e não se levantou.
Mas ele se levantou. Nos olhamos novamente, e ele se aproximou. Sentou-se e esticou a mão: queria o espelho. Entreguei. Seu braço se posicionou no joelho, o punho curvado no ângulo certo. Parecia acostumado àquilo. E estava: o espelho só se movia quando eu desviava o olhar para trocar as “ferramentas”.
“Ele é um querido, te falei”, ela disse, a voz trancada com a respiração. “É sim”, disse. O olhei, e ele retribuiu o olhar. Sabia que eu estava mentindo, nenhum de nós fez qualquer menção de disfarçar. “Vai demorar muito essa 'maquilaji” toda? Não era simplezinha?!”, ela estava ficando puta, mas não parava de fumar. “É discreta!, mas o processo é elaborado. Quando tu for mulher, vai entender”, eu já estava ficando irritada. “Eu sou mulher! Depois de tantas transas, tu ainda não tem certeza?”, e gargalhou. Os três gargalharam alto. Ele sorriu e me olhou. Não pude evitar rir; e ele me acompanhou com um barulho quase agradável na garganta, e um sacolejo dos ombros.
A cada toque de maquiagem, eu desviava meus olhos em sua direção. Ele estava me olhando fixo. Não me encarando, mas prestando atenção no que eu fazia. Sua expressão quase me convenceu de que era genuíno aquele interesse no meu maquiar. Mas não era. Não vindo de uma criatura tão baixa. Aos poucos, quando percebeu que eu não pararia de olhá-lo enquanto não fosse retribuído da mesma forma, seu olhar se clareou, se fixou no meu. A maquiagem em torno dos meus olhos ajudou no meu olhar sensual. Ele estreitou os olhos. Era toda a resposta que tiraria, e não consegui entender o que significava.
Havia terminado de me maquiar, mas não tinha certeza da roupa. Só então eles foram se tomar banho e se arrumar. Ficamos só os dois ali. Fiz mensão de me levantar, e ele já estava em pé. Até agora, ele não havia me visto direito; apenas de costas. E estava indo embora. “Não, tudo bem, pode ficar”. Esperava que ele fosse me olhar e sair, que agiria daquela maneira polida e fingida. Mas ele voltou, sentou na cama e deitou.
Ficou contemplando o teto o tempo todo enquanto eu me vistia. Eles entravam e saíam do quarto, entre pegar uma coisa ou outra, ir para o banheiro e descer para o carro. Mas não havia ninguém quando precisei de uma opinião. “Que tu acha?”, perguntei. Ele se ergueu em silêncio, e me olhou. Havia colocado o vestido mais curto e justo possível, e um scarpin preto. “Queria uma opinião feminina, mas...” e sorri.
Ele me observou de cima abaixo, exatamente como eu queria. Me sorriu e eu pré-ouvi um “está linda”... mas ele começou a colocar defeito. Apontou descombinações e desencontros. Ele fora falsamente delicado: soube disso quando me olhei. Parecia uma puta de posto de gasolina de rodovia federal, mas, sínico, apontou onde minha roupa não combinava e deu sugestões.
De fato, ele sabia do que estava falando. Fui obrigada a concordar, a ponto de pedir à ele uma opinião sobre meus brincos. Dali, fomos à festa combinada. Conversamos pouco. Eu dancei por nós dois, ele só me observou. Chegamos caindo de sono quando voltamos; eu dormi o caminho todo de volta.
Era o meio da tarde, já. Eu me levantei, esticando as costas. Ele ainda dormia, no chão. Os outros haviam desaparecido do quarto.
Tropecei nele, propositalmente. Estava com um pijaminha curtinho que ela me dera. Era lindo, e eu o achava extremamente sensual. Ele se torceu para um lado ou outro, lentamente. Esticou os braços, ergueu o pescoço, esfregou os olhos. Mal me viu e esfregou os olhos novamente. “Bom dia”, disse, e me sorriu, com os olhos escondidos pelos punhos.
Sorri, sem perceber. Me virei num susto, enquanto ele se sentava. Todo mundo deveria estar na praia, era o combinado: conforme acordássemos, iríamos indo à praia, sem acordar os outros. Mesmo pisando no colchão onde ele estava mal sentado, com as pernas abertas entre as pernas dele, eu tirei a blusa. Parecia que ele finalmente tinha me percebido. Se piscou e pareceu desconfortável. Como todos os outros, ele era nojento. Todo aquele joguinho na frente da minha namorada caíra por terra quando ficamos sozinhos e ele se deparou com meus seios nus.
Só que ele virou o rosto, discretamente, como se fosse um movimento qualquer, e não me olhou mais. Endireitou o corpo e baixou a cabeça. Tentou se levantar. “Desculpa, eu... eu vou sair. Desculpa...”
Aquilo me irritou muito. Ele era hetero, obrigatoriamente estava pensando asquerosidades. Mas estava se fazendo de bom moço. Joguei a blusa em seu rosto. Ele paralisou. Parecia respirar fundo; certamente sentindo meu cheiro no tecido. Mas ele retirou rápido a minha blusa, e chegou a impelir o corpo para cima e para frente.
Coloquei o pé em seu peito e o empurrei para baixo. Deitei por cima dele, impedindo-o com meu pouco peso que ele se mexesse. Nossos olhares se cruzaram, mas os olhos dele demonstraram um pouco de aflição. Ele se moveu embaixo de mim, mas não conseguiu sair: estava em uma posição desprivilegiada, em decorrência da minha. Só sairia de baixo de mim quando eu quisesse.
Aproximei meu rosto com o sorriso mais sacana que eu tinha. Nossas respirações se tornaram uma só, então eu o beijei. Seus lábios não se moveram quando encostei os meus. Então forcei minha língua contra seus lábios, que demoraram, mas cederam. Certamente seria para me beijar. Entretanto, seus dentes continuaram cerrados. Movendo os lábios devagar, ele falou. Ele falou!
“Não”, seu tom parecia suplicante. Eu sorri e lambi seus lábios ressecados pelo sono, mas ele riu. “Tu não foi com a minha cara desde o primeiro momento”, agora ele parecia debochado. “Não sei porque está fazendo isso, mas sei que tu me detesta por algum motivo que não sei, então, por favor, pára. Por ti, não faz”. Eu ri, e passei as mãos pelo abdomem dele. “Tu gosta de mulher, e eu respeito isso. Não precisa provar nada pra ninguém.”
Eu paralisei. Ele respeita? Desde quando homem respeita alguma coisa em uma mulher? Sem querer relaxei o corpo e afastei o rosto. Ele suspirou em alívio, e desviou o rosto. Fiz uma nova tentativa: levei minha mão à sua face, dizendo “tudo bem”, e trazendo seu rosto de novo para frente. Foi quando percebi que ele estava chorando. Lágrimas escorriam sem que ele fizesse qualquer barulho.
Eu não sou assim. Nós não somos todos iguais”. Eu fui obrigada a gargalhar. Fui abusada sexualmente. Fui estuprada para que eu aprendesse a gostar de homem. Fui humilhada e agredida no Ensino Médio. E era ele quem estava chorando. Eu não entendi, seria impossível compreender isso de alguma forma, por mim. Meu sorriso azedou, mas eu insisti em tentar novamente. “Eu não fiz nada pra ti. Por favor, não faz isso contigo, nem comigo. Não vou comentar nada, nunca, com ninguém. Só, por favor, não faz isso.”
Aquilo fez eu me sentir estranha. Saí de cima dele, recuei. Tirei a bermuda, virada para ele, que ficou o tempo todo de cabeça baixa. “Psiu!, que tu vê aqui?”, mas eu me sentia anestesiada. Estava com as penas abertas novamente, ele tinha visão total da minha vagina. Mas preferiu olhar diretamente aos meus olhos. O movimento mais lógico seria subir pelo meu corpo, mas ele só abriu os olhos quando seu rosto estava na direção do meu. “Uma mulher linda e adorável que gosta de outras mulheres”. “Não sou anormal?”, perguntei. “Porque seria?!”. “Qual a diferença entre nós dois?”. “Nenhuma.”. “Nenhuma?”. “Nenhuma!”. “Então porque eu fui tão agredida e tão humilhada por vocês?”. “Se eu soubesse, não poderia te fazer a mesma pergunta. Não sou um monstro como os que te machucaram, nem como os que me machucaram. Não escolhi ser hetero, não teria sido, depois do que me aconteceu. Tu é assim, eu sou assim. Sou o que sou, sou apenas eu.”
Eu virei de costas e vesti meu biquíni. “Tu me acompanha até a praia, ou vai ficar dormindo?”, e sorri. Meu sorriso foi sincero, desta vez, e ele percebeu. Secou as lágrimas e me sorriu de volta. Me pareceu até agradável, desta vez, e eu não consegui entender o motivo. “Licensa para eu trocar de roupa?”, ele pediu. Eu ri. “Acho que tenho o direito de ver o que nos faz diferentes.”, mas virei as costas e fui até a porta. Não confiava nele, ainda; mas era fato que ele não era igual aos outros.