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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Esquizofrenia - Capítulo 1 - Parte 2

Mesmo rangendo como uma velha senhora dolorida, a porta se deslocou com a leveza e elegância de uma jovem mulher. Era bastante pesada, mas abriu-se sem muita força, como se suas dobradiças estivessem em melhor estado que qualquer outra coisa ali.
O umbral dava para um corredor lateral que, até onde a fraca lâmpada acima da porta permitia enxergar, estava nas mesmas condições decrépitas que a sala. O chão estava coberto de cacos de azulejos que caíram das paredes, e dos canos expostos do teto pingavam o mesmo líquido escurecido que vazava do cano da pia.
Jonathan enfiou a cabeça para fora da sala, incerto do que poderia ver. A luz concedia pouco mais de 2 metros de visibilidade para cada lado, e só era possível ter certeza da parede do outro lado. Projetando o corpo um pouco mais para fora do umbral, foi capaz de ver, de cada lado do corredor, mais portas com lâmpadas. Suspirou, calculando que cada área iluminada estava separada da próxima por cerca de uns 5 metros de total escuridão.
Sabia desde o começo que não havia outra opção, então voltou ao quarto em busca de algo que pudesse protege-lo. Na idéia infantil de uma arma, só então percebeu que o cano da pia estava completamente solto, apenas escorado. Segurou o pedaço de ferro com as duas mãos e balançou-o como se fosse uma espécie de espada, sentindo-se preencher com uma segurança infundada.
Saiu do quarto e tomou o corredor para a esquerda. Avançou pela escuridão tateando a parede com a mão que segurava o diário, levando um pé à frente para primeiro reconhecer o terreno, o cano sacudindo à frente, ao lado e às costas como o rapaz pudesse ser atacado em qualquer momento. Quanto mais ele caminhava, mais a distância da luz parecia aumentar, mas, após o que pareceu uma eternidade, finalmente, adentrou na luminosidade, hesitando de euforia.
Com um misto de alegria e segurança, Jonathan viu um vulto se aproximar pelo lado oposto da luz. Correndo, a sombra tomou a forma de uma menininha de longos cabelos loiros em um vestidinho azul com uma espécie de avental branco. Havia algo nela que lhe era reconhecível, mas ele não conseguia pensar de onde. Ela era linda e fez crescer em Johnny um senso de responsabilidade para com ela, uma obrigatoriedade em protege-la, que lhe confortou e perturbou por não conseguir imaginar quem ela poderia sim. A menina, entretanto, não parecia feliz em vê-lo. Seu rosto transparecia um completo, concreto e terrível pavor, e ao vê-lo sua boca abriu-se em um pedido de ajuda que não pode proferir.
Com um som pesado e rápido algo brotou das sombras e acertou a menina por trás. A criança caiu para frente com o impacto, deixando à vista suas costas. A garganta de Jonathan embolou-se em um nó apertado, sufocante, ao ver o sangue que escorria do ferimento. Exatamente sobre a coluna vertebral dela havia um machado estranho, onde lâmina e cabo não se encaixavam, mas eram um, como se forjados como peça única, e a empunhadura, assim como quem o empunhava, desaparecia na escuridão líquida atrás.
A criança olhou-o com indescritível horror e mágoa em um último suspiro, então sua cabeça repousou nada delicadamente para o lado provocando um barulho oco. O machado foi puxado para cima, levantando junto o corpo imóvel, e sacudido para livrar a lâmina. Ao som úmido e triste causado pelo impacto do corpo com o chão, um rangido se fez ouvir.
Jonathan ouviu perfeitamente um leve baque e o ranger que se seguia, como se algo fosse usado como remo para algum tipo veículo com rodas. Também ouviu o som metálico quando o machado foi largado contra o chão e o arranhar que fazia ao ser arrastado. Petrificado, Johnny apenas olhava para a treva à sua frente e para o vulto que se descortinava ao se aproximar da luz.
Então um braço comprido e deformado rasgou a penumbra e firmou-se no chão com a mão deformada. O membro tinha uma pele que parecia ser extremamente fina, ou simplesmente não existir, permitindo se enxergar quase com perfeição absoluta veias, carnes, músculos, e era terminado em uma palma disforme com um único e longo polegar.
Conforme o ângulo de abertura do braço diminuía, Jonathan ouvia perfeitamente o rangido aumentar em sua direção. Seus nervos se contraíram, desviando seu olhar para onde surgiria milésimos depois uma face deformada. A adrenalina forçou o coração à pulsar dolorosamente rápido e obrigou o cérebro à mover todo aquele monte de carne e ossos que eram seu corpo para o lado oposto, e rápido.
Correndo desperadamente pelo meio do corredor, Johnny sequer lembrava de suas pré-estipuladas normas de segurança. Visando apenas o próximo foco de luz, atravessou pelo oásis em torno da entrada de seu quarto; e ouvindo, mesmo que cada passo mais distante, o ranger, testou as portas que se seguiram ao corredor, até uma finalmente abrir.
Entrou sem se preocupar com qualquer checagem, esquecendo-se do risco de haver qualquer coisa naquela sala, ou mesmo não haver nada. Virou-se rápido e fechou a porta, cuidando o máximo para não fazer qualquer barulho na esperança de despistar a coisa no corredor.
Tentando controlar a respiração, escorado contra a porta, olhou a sala que se abria à sua frente. Seu tamanho e estado desagradável era praticamente o mesmo do quarto em ele acordara. Havia uma porta dupla na parede oposta e uma mesinha de centro no meio do caminho.
Jonathan se aproximou da mesa, incerto e hesitante, olhando para trás como se esperasse a porta ser arrombada a qualquer momento. No tempo da mesa haviam três chaves um tanto incomuns; além de serem quase do tamanho de uma caneta, as extremidades que ficariam para fora das fechaduras eram compostas por bonecos do tórax para cima. Johnny pegou uma delas na mão, lembrando-se vagamente de uma escova do Batman que talvez tivera quando pequeno. Virou-se para a porta dupla, percebendo que cada lado possuía duas fechaduras e em baixo de cada fechadura havia uma palavra.
Baixou os olhos para a chave em sua mão, e estremeceu. Esquecendo-se da porta pela qual entrara, o rapaz então percebeu algo que o deixou realmente intrigado: duas das chaves tinham as mãos postas na frente do rosto, duas seguravam facas contra os pulsos; duas sorriam com os olhos revirados para cima, duas transpareciam uma dor terrível; duas tinham sangue nas mãos, duas choravam lágrimas de sangue. Todas as pequenas figuras possuíam vários pequenos orifícios por toda sua extensão.
Dispostas formando um quadrado, guardavam em seu meio um pedaço de papel dobrado. Largando delicadamente a chave de volta em seu lugar, fechando o quadrilátero com o extremo cuidado da infância, Jonathan pegou o papel e abriu-o.

Eu sou a tristeza e o desespero,
Mas a dor que me toma é do próximo o prazer
E o rubro que me escorre da dor incontrolável
Também escorre por aquele que não controla e provoca sua dor
De forma parecida que aquele que encontra o regozijo redentor

Somos problemas
E apenas nossa total solução é capaz
De o caminho para a verdade abrir

Johnny sentiu-se confuso ao ler aquilo. "De o caminho para a verdade abrir", pensou, levando o olhar até a porta. Abaixo de cada fechadura estava escrito "Fanatismo", "Masoquismo", "Compulsão" e "Depressão". Olhou de volta para o papel e para as chaves e teve certeza de que o enigma se referia à porta, explicando como abri-la. O problema é que ele não fazia idéia de como soluciona-lo.
Então pegou novamente uma das chaves na mão, se aproximou da porta. Tentou abri-la apenas para confirmar que estava realmente trancada, então inseriu a chave na primeira fechadura, a cima e à esquerda. Tentou gira-la para a esquerda, mas sentiu a chave trancar. Lentamente, girou-a para a direita e sentiu pontas finas e gélidas pressionarem levemente sua palma. Tirando a mão, observou que finíssimas agulhas saíam de todos os orifícios da escultura.
Girando a chave de volta para a esquerda, segurando-a com as pontas dos dedos, viu as setas serem recolhidas. Retirou a chave e tentou em todas as outras fechaduras, sempre com o mesmo resultado. Isso o fez sentir-se derrotado, já que haviam 4 fechaduras para serem abertas e uma das chaves não era de nenhuma delas.
Voltou à mesa e olhou para o enigma, e só nesse instante que uma simples palavra com um imenso significado lhe saltou aos olhos: "E apenas nossa total solução é capaz", pensou, "total. Preciso inserir todas as chaves para poder girá-las".
Olhou para a porta, calculando. Deveriam haver mais de vinte possibilidades, e da mesma forma que ele poderia acertar de primeira, poderia perder horas tentando já que possivelmente, após certo tempo, não conseguiria lembrar com certeza de todas as combinações já tentada e acabaria repetindo algumas, se não todas. Suspirou, temeroso, pensando que, de qualquer forma, o cansaço poderia resultar em descuido e qualquer descuido poderia resultar na perda de uma mão pela absurda quantidade de agulhas que saiam de cada uma das chaves.
Fixou seu olhar e seu pensamento no enigma, quando ouviu os sons nítidos de vidro sendo estilhaçado e de algo pesado batendo contra metal. Com um rangido alto e desesperado, a porta se abriu violentamente, batendo com um estrondo apavorante contra a parede. O machado sujo de sangue bateu firme no chão. A luz da sala escorreu para fora, revelando que a arma incomum não era segurada, mas fixada diretamente no antebraço da coisa do outro lado do umbral. Jonathan podia ver a pele estender-se até determinada altura do cabo em certos pontos.
Sua mente fora tomada pela adrenalina pela segunda vez, e ele teve de se controlar para não correr até a porta dupla e bater nela com as mãos implorando por ajuda. Seus batimentos cardíacos aumentaram consideravelmente, levando mais sangue para o cérebro, e Johnny tentou aproveitar isso como trunfo para solucionar o enigma.
Focou-se no papel. "Eu sou a tristeza e o desespero, mas a dor que me toma é o prazer do próximo". Olhou para as chaves. Haviam duas com expressão de dor em posições opostas entre si, mas idênticas à uma das outras duas com expressão de prazer. Posicionou as chaves, então, em duas fileiras de acordo com suas posições de mão.
(Viu o machado ser puxado para fora da sala...)
"O sangue que escorre de mim por dor que não controlo, escorre naquele que provoca dor sem controle". Pensou, mas não conseguiu encontrar qualquer forma de reposicionar as chaves. "O sangue escorre daquele que não consegue se controlar na posição que aquele que encontra o regozijo redentor". Suspirou, pensando o que nos bonecos poderia representar redenção, e espantou-se ao perceber que, com as mãos postas, a face demonstrando alegria e os olhos sangrando, uma das estatuazinhas parecia incrivelmente com a imagem de um santo. Puxando esta chave para baixo, voltou-se para o papel.
(...e a mão deformada buscar apoio no chão do recinto para puxar seu corpo desconhecido)
Repensou sua ultima frase, "o sangue escorre daquele que não se controla na posição daquele que reza", e pegou a outra estátua com as mãos postas. Esta tinha sangue nas mãos e a face contorcida de dor. Posicionou-a, então, em cima da ultima chave. Restava definir a posição das outras duas.
(Ouviu primeiro o rangido...)
"Minha dor é o prazer do próximo". Pegou a chave que mostrava alguém com as mãos sangrando e feliz por ter se cortado, e colocou-a em cima das outras duas. Então a ultima, que transparecia dor, mas sangrava pelos olhos, encabeçou a fila indiana.
(...e então o arrastar do machado)
Olhou para a porta, precisando definir o que cada uma delas representava. Para a fechadura do "Fanatismo", colocou a estatua em oração. Para "Masoquismo", inseriu a que se cortava e sorria. Em "Compulsão", pôs a estátua que fazia suas mãos sangrarem. E na fechadura da "Depressão", a chave do boneco que pensava em se matar.
Girou a primeira chave com calma, mas não sentiu nada se projetar dela. Ouviu a criatura se aproximar, derrubando a mesa ao esbarrar nela. Virou a segunda e a terceira ganhando confiança e esquecendo-se do cuidado. Podia sentir a presença dela quase em cima dele quando girou a ultima chave.
Jogou o corpo para o lado, escorando as costas contra a porta da direita. Saiu do caminho da lâmina que bateu com força no metal, escancarando as portas. Perdendo o equilíbrio, Jonathan cruzou seu olhar com o da coisa à sua frente. A face da criatura era deformada, mas havia qualquer coisa humana em seus olhos.
Johnny estava caindo para trás, caindo nas trevas. E de repente, estava simples e somente caindo no vazio, como se sua existência fosse apenas uma queda eterna e infundada. E antes que este pensamento pudesse cair, também, de sua mente, lhe concedeu certo conforto. Se não havia nada, nada poderia machucá-lo. E se nada poderia machucá-lo, então, talvez, estivesse em casa.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Esquizofrenia - Capítulo 1 - Parte 1

- Não corra, Johnny! Vai doer mais se fugires! - gritava uma voz feminina, mas Jonathan a ignorava.
Descia correndo a escadaria, pulando os degraus de dois em dois, segurando o corrimão com força. Atravessou a sala sem olhar para trás, ouvindo batidas nos degraus cada vez mais baixos. Abriu a porta e, ao cruza-la, a luz da lua o ofuscou...

... e mesmo com os olhos apertados, a luz penetrava livre pelas pálpebras comprimidas e os fazia arder e lacrimejar. Então o mundo caiu em trevas, aliviando toda a dor, e assim que Jonathan aliviou os músculos da face, aquela brancura suja torna a lhe rasgar as córneas.
Deitado, com as costas doloridas como se estivesse naquela posição a tempo demais, deixou-se acostumar com a situação. Percebeu um pingar constante e próximo, e o "splash-splash" da água foi quase reconfortante. E se não fosse realmente, pelo menos explicava o cheiro de mofo que avançava por suas narinas e, como se chegasse à seu estômago, lhe dava certa náusea.
Abriu os olhos, por fim, piscando contra a iluminação até suas pupilas se comprimirem o suficiente. A lâmpada comprida e empoeirada não se firmava de nenhum sentido; solta do teto e pendurada apenas pelos fios, a luz oscilava e piscava, ora seguida ora espaçadamente, vez ou outra demorando um pouco para retornar.
O teto em si não era uma visão mais agradável. Descascado e sujo, já possuía grandes falhas no forro de gesso, deixando a mostra vigas de concreto que formavam cadeias de concreto e davam à Jonathan a impressão de estar olhando para uma grande e estranha colméia.
Sentou-se, avaliando seu corpo sem reconhecer nada ali. À exceção de uma camisola plástica e meias brancas, estava completamente nu. Em seu braço havia um acesso, mas o tubo e a bolsa de soro estavam secos. Com cuidado, puxou a agulha e liberou o braço.
Suspirou, inalando com força o ar poluído pelo bolor e olhou em volta. A maca em que se encontrava, o suporte do soro, as paredes e o piso não estavam em melhor estado que o teto, e isso não o alegrou, mas sua cabeça estava conturbada demais para apresentar quaisquer outros sentimentos. Do outro lado do quarto estava um sanitário e uma pia também decrépitos; o cano da torneira, quebrado, deixava um líquido escurecido pingar no chão e uma grande mancha verde de mofo crescia para todos os lados a partir daquele ponto.
Trôpego e ignorando a umidade pegajosa que fazia um barulho gosmento aos seus passos, levantou e se aproximou do espelho sujo e enferrujado, mas de outro modo intacto. Sentiu como se o frio do chão entrasse pelas solas dos pés e subisse até a cabeça, concedendo-lhe um alívio quase divino. Passou a palma da mão no vidro empoeirado, abrindo um rastro manchado por onde viu um rosto que não lhe trazia qualquer lembrança mesmo que vaga.
Uma azia repentina lhe rasgou a garganta, acompanhada de uma ânsia de vômito tão forte que o obrigou a se curvar sobre a pia, comprimindo o abdômen e quase encostando o rosto na louça. O esforço dos músculos fez seu estômago doer incrivelmente, e a gosma rala e esbranquiçada que ele teve de cuspir o fez se perguntar a quanto tempo não comia, mesmo que não sentisse fome. Firmemente apoiado nas bordas da bacia, empurrou o corpo para cima, e pode jurar, por um único momento, que uma criança correra e se abaixara atrás do sanitário.
Instantaneamente sóbrio pelo susto, pela primeira vez Jonathan olha em volta, assimilando o local à sua volta como se o manto embevecido do conforto tão único oferecido pela sonolência se descortinasse ferozmente, obrigando-o a perguntar onde, diabos, estava. A sala deplorável, antes indiferente, agora parecia assustadora, composta, à exceção da pia e do vaso, por ferro e concreto.
Não havia mais ninguém ali, além dele, e existia apenas uma saída do recinto: uma porta grande de ferro. Pensando rápido, concluiu que se a porta não estivesse enferrujada, seria pesada o suficiente para produzir barulho que lhe chamasse a atenção. Se tinha mais alguém ali, esteve o tempo todo, e pensar nisso lhe causou um calafrio.
Hesitante, caminhou para frente se aproximando do sanitário, ao mesmo tempo que abria espaço para o centro do quarto. Esperando ver alguém pequeno agachado, assustou-se com o vazio. Com a boca levemente aberta em uma exclamação muda de espanto, permaneceu olhando para o nada até, finalmente, perceber uma ponta atrás da caixa de descarga.
Aproximou-se incerto, imaginando que seria atacado por vermes ou aracnídeos. Quase certo de que sua sombra se moveria e lhe agarraria o pulso, levou a mão atrás da caixa e puxou um caderno. A capa tinha uma fita crepe com um nome escrito: William King. Sentado na tampa do vaso, abriu a capa dura e começou a ler.

Dr. Landau me deu este caderno e mandou que eu escrevesse nele tudo que me viesse à mente. Disse que era bom pra minha recuperação. Que quanto mais eu escrevesse, mais fácil ia ser de eu me recuperar. Só que eu só tenho um problema, e já disse isso pra ele. Meu problema é saudades da mamãe.
Ninguém me diz droga nenhuma sobre o porque estou aqui. É só tu tá dodói, queridinho, ou tu tá aqui pra ficar bom, docinho. Porque eles não vão pro inferno todos eles? As outras crianças têm rido de mim e perguntado como é ver aranhas fluorescentes no teto e como é matar alguém. Não entendo sobre o que eles tão falando, e uma enfermeira sempre me tira do pátio quando isso começa. Eu nunca consigo entender nada nesta bosta de hospital.
Mais uma coisa eu sei, o Dr. Landau vai ficar bravo se ler meu caderno, ele que se esploda, também, eu quero que ele entenda só uma coisa. Eu quero a MINHA mãe e quero SAIR daqui.

Todas as outras páginas estavam em branco. Suspirou, olhando a capa. William King. Fosse quem fosse, o nome não lhe era de todo estranho, e estremeceu ao perceber que talvez lhe fosse mais familiar que seu próprio reflexo no espelho. Sentindo-se deslocado, tentou lembrar de onde conhecia aquele nome, mas não lhe veio nada à mente.
Fechou os olhos, pensando, tentando recordar-se de qualquer coisa sobre sua vida. Sua família, seus amigos, sua casa, sua comida preferida, qualquer coisa. Mas quanto mais forçava sua memória, mais o vazio ecoava. Sentiu-se sozinho enquanto um desespero inumano lhe tomava o corpo.
Se perguntou quem era, onde estava e porque estava ali, e a única resposta que obteve de si próprio fora seu nome, Jonathan Blake. Olhando para as mãos desconhecidas que seguravam o caderno, se perguntou se aquele não era apenas outro nome que ele associara erroneamente a si próprio.
Estava completamente só em um cubo de, achava ele, quatro metros de lado, vestido com um saco plástico e meias molhadas e sujas e com um diário qualquer nas mãos. Sentia-se abandonado, e lhe pressionava a ironia que era não saber por quem fora deixado. Sentia-se sozinho, mas não sabia quem poderia ou deveria estar ao seu lado. Sentia-se perdido, e esse era o único sentimento que pode julgar verdadeiro.
Em completo silêncio, como se houvesse alguém que pudesse escuta-lo, ele chorou. E chorar o fez bem. O calor das lágrimas lhe fez ter certeza de que estava vivo, e dissipou, ao menos em parte, sua dor. Olhando em volta com os olhos embaçados, percebeu que tinha apenas duas opções: esperar alguma coisa acontecer e correr o risco de nunca acontecer nada, ou tentar a porta.
Secou os olhos e se levantou. Caminhou decidido até a porta e a olhou. Mesmo enferrujada ainda era possível ver que um dia fora azul. Possuía uma janela pequena pouco acima da altura de seu rosto, fechada com grade por dentro e um tampo por fora, e uma espécie de portinhola na parte inferior, que ele julgou ser por onde alguém da rua passava a comida, e que ela tapava completamente o umbral, não deixando qualquer vão. Não havia trinco, maçaneta ou qualquer outra coisa assim pelo lado de dentro.
Teve certeza de que estaria fechada e lágrimas lhe encheram novamente os olhos. Com as mãos trêmulas, segurando o caderno em uma, tocou a porta com a outra e a empurrou.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

...friend

Ela sentiu os pés gelarem ao tocar o piso frio. Sentada na beirada da cama, após tê-lo dado um beijo ao acordar, pensava que aquilo fora um imenso erro. Ele havia acabado de se divorciar, ela tinha um filho pequeno, aquela fora a primeira vez que se falaram depois de seis anos.
Sentiu o braço forte dele envolvendo sua cintura, e sua barba lhe raspar a face ao ganhar um beijo. A lágrima que rolou ele secara antes que passasse da altura do nariz. Era madrugada ainda, e ela deixou ser levada de volta para baixo das cobertas. Demorou para dormir de novo, pensando no que acontecera entre eles e, para seu alento e desespero, sabia por sua respiração que ele também estava acordado.
Dias antes, eles haviam se cruzado pela rua e, após um cumprimento rápido e amigável, ela havia parado no meio da multidão, se virado e o chamado. Ele sorria aquele sorriso que era só seu, que a fizera levantar a cabeça tantas vezes depois de um tombo dolorido. Ela estava procurando por um apartamento pequeno e barato a algum tempo, e perguntou se ele ainda trabalhava com imobiliária, pegou seu cartão e ficou, sim, de ligar.
Ligou no outro dia, sexta-feira. Sim, estava em casa e é claro que poderia ir visitar as opções que ele tinha. Arrumou seu filho, sentindo o coração apertando. Estava nervosa, muito, mas impedia-se de pensar que era por causa dele; havia ficado nervosa quando fora conhecer outros imóveis com outros corretores, só poderia ser o mesmo motivo agora. Ele a vira barriguda como um hipopótamo e fora amigo do desgraçado que a deixara sozinha com um filho para criar, fugindo do kitnet que haviam alugado no nome da mãe dela antes que ela chegasse do serviço. Mas ele não vira isso, ele e seu ex-marido haviam discutido um mês antes do guri nascer. Seu, na época, companheiro havia quase destruído o carro do amigo em um poste e se negara a pagar nem mesmo uma parte do conserto.
Ela ouviu a buzina e, olhando pela janela, reconheceu-o dentro de um carro estacionado à frente de sua casa. Desejou pedir à sua mãe que o dispensasse com uma desculpa qualquer enquanto descia as escadas. Abriu a porta, as mãos tremendo, e chamou seu filho, que passou por ela correndo, brincando de aviãos tremendo, e chamou seu filho, que passou por ela correndo, brincando de aviserto.ela junto, sem pagar; o carro que usavam no, e a esperou no portão. No banco de trás havia uma cadeirinha na qual ela instalou seu filho, ouvindo o motorista dizer que fez bem em colocá-la no carro. Sentou-se ao lado dele, mas conversaram pouco no caminho de ida e de volta, e ele fora extremamente profissional, quase frio e calculista, o tempo todo.
Quando chegaram à frente da casa novamente, ele esperou com o carro desligado os dois entrarem no pátio. Quando ela já havia até se virado para a casa, depois de trancar o portão, ele não resistiu e, com a cabeça para fora da janela do carona, chamou-a. Sentindo um frio na espinha e uma vontade de correr para dentro, bater a porta e se esconder em seu quarto, ela se virou.
Ele parecia inseguro e não sabia como começar, então desceu o carro. Ela, relutante, atravessou o portão. Parados na calçada, frente a frente, ele perguntou se poderia vê-la de novo, sem... bem, sem ser a trabalho. Surpresa e confusa, sentindo-se a adolescente estúpida que engravidara aos 15 anos, ela disse que sim, claro, porque não. Tímido, ele sorriu, lhe dizendo que então tá, ele tinha o número dela, se ela não se importasse que ele ligasse, ao que ela respondeu que não havia problema nenhum, mas entrou em casa certa de que ele não ligaria.
Entretanto, ele ligou na mesma noite. Sua mãe, como pedido, disse que ela não estava, que havia saído com um amigo, e, ao desligar, também como solicitado, apenas comunicara à ela que era ele ao telefone. Ela retornou no sábado a tarde para o telefone que estava no primeiro cartão-de-visitas que recebera, fingindo ter perdido o segundo em que estava escrito atrás, à caneta, o número pessoal dele. Não chegou a chamar duas vezes, e ele atendeu chamando-a pelo nome.
Parecia distante na ligação, e ela perguntou se tinha acontecido alguma coisa. Ele respondeu que não, que só, bem, que não era nada, e perguntou como havia sido o passeio ontem. Ela disse que fora ótimo, que havia visto muitos apartamentos à venda; ao que ele riu sem graça, perguntando se sua mãe não tinha lhe dado seu recado. Sorrindo, disse que, sim, sua mãe comentara que ele havia ligado, mas não passara nenhum recado. Chateado, respondeu que, ah, tudo bem, não era nada de importante, mas que ficava feliz por ela estar namorando de novo e que desejava sorte e felicidade no relacionamento. Ela riu e disse que não, não estava namorando e, sem se conter, explicou para ele que não não saíra na noite anterior, mas ficara, na verdade, com vergonha de falar com ele e ouviu ele tossir, pigarrar e dizer que tinha de desligar, que estava atrasado para uma saída. Mandou-lhe um beijo e desligou antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.
Ela teve tempo apenas de lamentar com a mãe sua infantilidade antes de ouvir a buzina que, sem perceber, reconhecera como a do carro dele. Quando chegou à porta, ele já estava no portão, perguntando se ela estava ocupada e se queria dar um passeio com ele. Sem ter tempo nem de pensar, sentiu sua mãe lhe beijando o rosto e lhe dizendo que fosse com Deus.
Foram ao shopping, assistiram um filme qualquer que ela escolheu no cinema, comeram um Big Mac e tomaram um sorvete. Ele lhe comprou um ursinho de pelúcia que ela achou fofo ao ver por uma vitrine. Rindo como crianças, ela comentou que aquilo era passeio de adolescentes, coisa que não eram a tempos. Ele deu de ombros, disse que não se importava, e lhe roubou um beijo.
Agora, ela adormecia em seus braços pela segunda vez naquela noite, sentindo a respiração dele em sua nuca, com os olhos da memória revisitando o momento em que, logo após o selinho roubado, ela pôs as mãos no rosto dele, puxou-o e o beijou de verdade.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Trecho de "Esquizofrenia"

A luz bruxuleou uma ultima vez, e morreu, ao mesmo tempo que um frio de repente lhe fustigou o rosto. Pelo canto do olho, viu um vulto passar no final do corredor, seguindo o caminho da Milha Verde. Ouviu um arrastar de pés, um baque baixo e um som gutural e extremamente comum, como um nome (Hugo? Raul?) sendo proferido.
Virou-se para a recepção, de costas para a porta (boca) do elevador (faminta) aberta (escancarada). Entre ele e o balcão havia uma enfermeira. Ajoelhada, a mulher vomitava sangue; o som e o cheiro eram terrivelmente nauseantes, embrulhando o estômago sabe-se lá à quanto vazio de Johnny.
Um, dois, três passos hesitantes em direção à moça, desejoso e enojado demais para auxiliá-la. Ela havia parado com os jorros, e ele tinha certeza absoluta de que fizera a mais estúpida pergunta já formulada em uma situação como esta: "moça, tudo bem?". Foi quando seus olhares se cruzaram que tudo começou.
A enfermeira abriu a boca, cheia de sangue, deixando escorrer o líquido rubro pelo uniforme nada limpo. Os olhos tornaram-se vermelhos, e lágrimas rubras escorreram. Uma fenda vertical abriu-se no lábio superior da mulher, forçando seu rosto a uma expressão amplificada de dor e desespero da que já possuía. Levou a mão à boca, como que para tocar o lábio, mas tornou-se uma concha quando baixou a cabeça. Ao levanta-la, a mão estava cheia de dentes, as raízes banhadas em sangue. "Me ajude", ela disse, a voz distorcendo conforme a fenda rasgava seu rosto, subindo pelo nariz. Seu olhar suplicante e desesperado tornou-se vago, vidrado, os olhos se arregalando até saltarem, literalmente, para fora do rosto. Presos, inicialmente, pelos nervos e veias, logo soltaram-se completamente, caindo, um na mão aberta, entre os dentes, o outro se espatifando contra o chão como uma fruta podre (o som que fez ao bater no piso, curto e úmido, Jonathan nunca conseguiria descrever, mas sabia ser capaz de esquece-lo). A fenda subia pela ponte do nariz, a boca retorcendo-se em um último desesperado ato humano. Os maxilares se separaram, forçando os ossos do rosto a se dividirem em direção à fenda, revelando dentes pontiagudos, afiados, alinhados em vertical. O cérebro à mostra; os ossos se realinhando, fechando os buracos dos olhos e da boca humanos; a pele do rosto se repuxando, o nariz, os lábios e as pálpebras se desfazendo em massas amorfas; a epiderme toda arroxeando, apodrecendo levemente, perdendo pedaços e expondo feridas purulentas.
Recuando, Jonathan quase perdeu o equilíbrio quando seu calcanhar encontrou o degrau do elevador (o carro não havia descido, talvez não descesse nunca mais). Jogando um pouco de peso para frente, viu a enfermeira esticar os braços, as mãos de compridas unhas negras em sua direção, e avançar com passos cambaleantes e incrivelmente rápidos.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Por quem os violinos choram

Eu podia começar essa (talvez nem tão) pequena narrativa como Paulo Coelho começa "seus" Onze Minutos (tempo, por sinal, que o personagem desta levou para desistir do livro e decidir dá-lo), com "Era Uma Vez". Inclusive usando a mesma desculpa de que, mesmo não sendo um conto de fadas, a história começa com o personagem ainda criança, logo, a introdução é aceitável. Entretanto, vou me ater a contextualizar a narrativa, já que os fatos serão apresentados como se encaixarem melhor e não necessariamente por uma ordem de tempo-espaço.
Tudo levou cerca de 12 anos, começando na metade da década de 1990 e terminando pouco depois da metade da década de 2000, e se sucederam durante 3 anos em uma escola estadual, 3 em uma escola confessional católica, 1 na mesma escola estadual, 3 em uma rede luterana (já que foram um semestre em uma e 2,5 anos em outra escola, ambas da mesma rede de ensino) e outros 2 anos na mesma escola estadual. Vale lembrar que tudo contado aqui, como diz o Guri de Uruguaiana, são causos verdadeiros e que aconteceram de fato.
A história certamente não teria nada de interessante para se contar, já que o individuo em questão era um garoto mediano, comum: estatura média-baixa, levemente fora do peso, notas boas, pouco popular. Comum, claro, se não houvesse um pequeno agravante que nos remete ao título destes escritos. Para quem não sabe, um dos "estilos" da música erudita era composto para e tocado em ritos funerários católicos; o certamente mais popular destes réquiens é aquele que conhecemos pela alcunha de "Marcha Fúnebre". Um réquiem, ao ver do personagem, só é bonito quando com muitos violinos que, ao "chorarem", nos transmitem todo o sentido desse estilo musical: a dor da morte.
A grosso modo, a escola foi um inferno. Sempre há, acredita-se, alguém que serve de bode expiatório em alguma turma, e sempre há aquele que o serve em todas elas. Nosso guri, no caso, era o saco de lixo pancada de todas as turmas em que estudou... as vezes literalmente.
Só de pensar, ele é capaz de sentir as faces quentes de dois tapas, um em cada lado, que levara dentro da sala e durante uma aula. O (a) professor (a), falsamente escandalizado (a), ordenou que o aluno, repetente e mais de duas vezes maior que o menino, sentasse, proferiu um pequeno sermão e voltou-se à seu quadro, deixando o grandalhão com um grande sorriso satisfeito. Da mesma forma, lembra-se perfeitamente do que sentiu ao levar mais de dez socos no estômago, enquanto seu agressor lhe pressionava a garganta com o braço que lhe segurava. Rir junto da piada de alguém, junto com toda a turma, nunca foi uma experiência muito feliz.
Sempre o excluído, o ignorado, o rejeitado. Até hoje ele não consegue entender os verdadeiros motivos disso. Podem ser suas notas melhores que a média da turma, o fato de sua mãe ser professora na escola, ter sido enteado de um professor de outra, por ser pelo menos um ano mais novo que o resto da turma. Isso o fez focar-se na leitura e na escrita, frutos estes colhidos através de elogios (acredita-se que falsos) enaltecendo suas capacidades como escritor. A princípio, escrevia em versos, pois assim é mais fiel e mais fácil (para não falar em mais cômodo) expor sentimentos, já que a prosa exige uma certa estrutura que os próprios sentimentos não possuem.
Acaba conhecendo o RPG através de um colega, um dos poucos que lhe dirige a palavra, e se afeiçoando ao hobby, por sua proximidade com a literatura. O que acarreta em sua eterna tentativa de trabalhar com sistemas e cenários próprios, nada até hoje com qualquer resultado concreto, mantendo-lhe na eterna frustração proveniente da inexistência de oportunidades para quem realmente as precisa.
Mas, se tudo foi tão ruim, porque voltar, mesmo que de outro lado? Por dom. Sim, dom. Mesmo depois da rejeição total, das piadinhas constantes, da humilhação, da dor e do sofrimento, só mesmo tendo algum dom para manter o gosto forte pelos estudos que sempre teve. Da mesma forma, o desejo de ajudar os outros em qualquer coisa, e a ajuda sempre bem-sucedida aos colegas com dificuldade em alguma matéria sempre o fizeram manter-se firme nesse sonho.
Foi difícil ouvi-los chama-lo de coisas que não era, algumas vezes quase como uma imposição. Ele é isso, ele é aquilo, ele não joga nada, ele é um idiota, um imbecil. Lágrimas escorreriam de seu rosto sem traços de beleza se seu coração não ficasse tão apertado ao lembrar de detalhes dos quais não consegue, não sabe como passar para a escrita.
Nunca nem ao menos uma oportunidade de liderança, nem em trabalhos de 4 ou 6 pessoas, mesmo quando sempre era o que mais tinha idéias e opiniões para contribuir, mesmo depois de ser provado pela nota conferida ao trabalho que suas idéias, e não de fulano ou sicrano, estavam não certas, mas mais de acordo com o esperado pela professora. Nunca um reconhecimento, mesmo quando seu trabalho da feira era visivelmente superior (inclusive pela quantidade de votos), sempre havia uma forma de "mexer os pauzinhos" à favor de outrem. Mesmo com pilhas de folhas escritas com poesias elogiadas por duas ou três professoras de português e literatura, era o livro de outro que era publicado, exposto com trechos lidos e nenhuma venda (à exceção de parentes próximos).
Uma gagueira nervosa era motivo de chacota de alguns professores ao avisarem que o grupo do menino teria um tempo maior para poderem apresentar o trabalho na íntegra. E por vezes, quase era possível ouvir os violinos chorando, sempre que por sua cabeça passava a idéia de acabar com tudo, de dar à César o que é de César, de deixar então que a última piada de mal gosto pairasse para sempre na lápide em branco de alguém que cansara de ser capacho.
É por isso que ele afirma que só um dom poderia tê-lo feito continuar depois de tudo, sobrepondo limites que fizeram outros seguirem para a clareira no fim do caminho.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Projétil

O homem tirou uma bala do cinturão com o indicador e o polegar e segurou-a. Olhou o projétil brilhando a luz do sol, o metal polido quase servindo de espelho. Pôs o objeto na boca e chupou-o em um beijo de despedida, recolocando-o na arma.
Olhou para a coisa a seus pés, rezando desesperada e quase silenciosamente, e girou o tambor. "Não", implorou o rascunho de homem, covarde demais para encarar a morte de pé, "Tenho família, mulher e filhos, uma mãe doente pra cuidar". O matador focou seu olhar nos olhos do maricas à sua frente, pensando em quantas vezes já ouvira aquilo e... suspirou fundo, desejando rasgar a garganta do borra-botas com seu facão e poder voltar para casa de uma vez: o afrescalhado começara a chorar.
- Te levanta, cria dos infernos, que assim vais é virar concubina do Pé-preto! - gritou com raiva - Sejas homem macho pelo menos na hora da morte! Mantenhas a tua honra ou vais destruir a minha também! E se o fizeres, podes ter certeza que te trago de volta só para te matares de novo e ter minha vingança! - era engraçado como aquilo sempre funcionava, ele só não sabia se era o que ele dizia ou como ele dizia, e tinha de se controlar para não dizer coisas sem sentido para descobrir.
Ergueu o revolver de cano largo e comprido, encostando-o na testa do infeliz. "Tu sabes que tens três chances, não?", e o viado concordou acenando a cabeça, forçando-se a engolir o choro. Claro que sabia, tinha visto de dentro do carro todo o ritual que mandara um de seus sócios para o além.
Aquela não era a primeira vez que aquilo acontecia, afinal, ele não era um homem muito cuidadoso. Cuidado em demasia era para quem tinha o que perder, e só fracos tinham fraquezas. Entretanto, era a primeira vez que o curioso era outro pelo qual a morte já estava paga. Riu, pensando que aquele deveria ser, sim, seu dia de sorte, e que tinha de acender o dobro de velas na igreja.
Girou o revolver, como um cowboy dos bang-bang do cinema, encostou o cano novamente na testa da coisa e, antes que ele pudesse ao menos fechar os olhos, puxou o gatilho. Sentiu um desespero pelo estalinho seco e um líquido quente escorrendo abaixo de seu joelho, não necessariamente nesta ordem. Olhou para a coisa nua a seus pés, que acabara de se mijar toda, e chegou a duvidar da dádiva de seu santinho, repreendendo-se logo em seguida e obrigando-se a acender o dobro do dobro das velas quando chegasse na igreja.
Se perguntando se era realmente piedoso, e com quem era piedoso, mandar que as vítimas tirassem as roupas para que não sofressem qualquer dano desnecessário, puxou novamente o gatilho, quase sem perceber, descumprindo o seu ritual de conversar com os pelados ajoelhados para acalmá-los. Estava com raiva daquele serzinho insignificante e queria acabar com aquilo logo. Puxou o gatilho de novo ao ouvir o estalar baixo, e pela terceira vez sua arma lhe deixou na mão.
- Vai! - gritou, jogando a cabeça com ódio para o lado, indicando o caminho.
O frouxo mal levantou-se e já saiu correndo, tropeçando, arrastando uma das mãos no chão em busca de apoio. Quando ele estava nem bem a 10 metros, correndo com as coisas balançando para baixo e as mãos balançando para cima, o assassino pressionou o gatilho. Assim que a arma falhou, ele puxou de novo só para ouvir pela quinta vez o estalo oco.
Suspirou e fez mira direto na cabeça. Segurando a arma com as duas mãos, e pensando em seu santinho, atirou pela sexta vez. Ouviu a explosão e pode ver a bala rasgando o ar em direção à nuca. Viu o momento exato da colisão, o tiro acertando, rasgando, fazendo pele, carne, sangue e ossos voarem por todos os lados.
Encostou o cano fervente do disparo no antebraço esquerdo. Urrando de dor, aquela era, desde o primeiro homicídio, sua primeira forma de expiação.
Ainda tentava conter as lágrimas, mantendo o cano que esfriava contra a pele ardida, quando se afastou da cena buscando a cidade mais próxima com um lugar para comprar suas oito velas e pelo menos uma capelinha para acendê-las.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

RPG à Luz da Bíblia

Tá, eu sei que não é o intuito desse blog esse tipo de post. Mas, "o homem tem que fazer o que um homem tem que fazer", ou seja, como todo RPGista que se preze, é minha obrigação divulgar o que está por vir logo abaixo.
E, como não sou nenhum grande filho-da-puta, vi tudo que segue abaixo, exatamente como segue abaixo, aqui: http://novageracaoemcristo.blogspot.com/2010/10/apologetica-do-rpg-seriam-os.html
Bueno, vamos à ele:
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A Apologética do RPG: Seriam os roleplaying games reprováveis à luz da Bíblia?

Este curto trabalho se propõe a, uma vez definido o que seria RPG, analisá-lo à luz da Bíblia, buscando compreender se as críticas de alguns teólogos e líderes protestantes normalmente dirigidas a este passatempo sustentam-se dentro de um paradigma teológico.



1. Introdução

É comum os teólogos e as congregações protestantes manifestarem-se de forma conservadora diante das novidades, em especial quando estas estão relacionadas ao entretenimento. Foi assim com o cinema, televisão, desenhos animados e com os videogames. Busca-se nestes casos uma leitura dos textos bíblicos no sentido de consolidar uma exclusão, uma proibição, uma prova de que o elemento analisado (seja programa, filme, desenho ou jogo) seria imundo e impróprio para consumo de um cristão genuíno. Não é de se surpreender, portanto, que os Jogos de Interpretações de Papéis, comumente chamados de RPGs, tenham sido expostos, teologicamente, a este mesmo tipo de tratamento.
Este artigo se propõe a demonstrar, através de bases bíblicas, que o RPG não vem a ser, ao menos por si próprio, maligno ou nocivo, mas, como qualquer outra coisa, pode ser inofensivo ou prejudicial dependendo de como é utilizado.
As fontes para esta análise são alguns dos títulos de RPG mais comuns, a partir de seu próprio discurso, junto a uma interpretação de textos bíblicos pertinentes ao assunto.




2. Definindo RPG

Estabelecer o que vem a ser RPG não é uma tarefa simples. Cada Jogo de Interpretação de Papéis traz uma definição própria de si mesmo, e vários estilos diferentes podem ser encontrados tanto no mercado nacional como estrangeiro. Entretanto, através de uma analise comparativa, é possível estabelecer um denominador comum acerca do que seria RPG. Este denominador estaria em três pontos: interpretar papéis, vencer desafios e contar uma história no processo. Estes elementos são onipresentes em qualquer Jogo de Interpretação de Papéis.
Se não, vejamos. O título D&D, em sua 3ª Edição (COOK & TWEET 2001), define-se da seguinte forma:


Bem vindo ao jogo que definiu a imaginação fantástica por mais de um quarto de século. Quando joga Dungeons & Dragons, você cria um personagem fictício único, que vive em sua imaginação e na imaginação de seus amigos. Uma pessoa no jogo, o Mestre, controla os monstros e as pessoas que vivem no mundo de fantasia. Você e seus amigos enfrentam os perigos e exploram os mistérios que seu Mestre coloca em sua frente.
Apesar de implícito, o aspecto de contar uma história se faz presente na medida em que a atividade gira em torno de criar um personagem que será representado pelo jogador diante dos desafios que o “Mestre de Jogo” (um outro participante) estabelece. No título GURPS (JACKSON 1994, página III), encontramos algo muito semelhante:


Roleplaying Game (RPG) em tradução literal significa “Jogo de Representação”, mas ele é na verdade um tipo de jogo muito peculiar, pois em um RPG não há vencedores: todos se divertem e todos ganham.




As pequenas e grandes batalhas, as verdadeiras emoções, se dão no desenrolar de uma história, uma aventura, que é criada e vivida pelo grupo de jogadores. É no desenrolar destas histórias que surgem as derrotas e vitórias. Altos e baixos, que somados ao fim garantem ao participante a satisfação de ter atuado como um viajante dos caminhos que imaginação da equipe resolveu trilhar.

Mais uma vez, o aspecto de representar personagens, vencer desafios e contar uma história fazem-se presentes. Desta forma, o prazer, o sentido e o objetivo de jogar RPG consistem nestes aspectos.
O polêmico Vampiro: a Máscara (HAGEN Devir, 1994), sucesso absoluto de vendas durante a década de 1990, de temática forte e indicado para maiores de 18 anos, acaba por apresentar os mesmos conceitos:


Vampiro é um jogo de faz de conta, de mentirinha, de contar histórias. Embora Vampiro seja um jogo, seu objetivo está mais em contar histórias que em vencer. Se você nunca fez este tipo de coisa antes, deve estar confuso com o próprio conceito de um jogo de contar histórias. Porém, depois de compreender os conceitos básicos, descobrirá que a coisa não é tão estranha assim mas, na verdade, curiosamente familiar.




Você e seus amigos contarão histórias de loucura e de desejo. Histórias de coisas que duelam na noite. Contos de perigos, de paranóias, de um mal sinistro. Contos oriundos de um recesso mais sombrio de nosso inconsciente. E no âmago destas histórias repousam os vampiros.


Estas histórias irão conquistar a sua imaginação muito mais prontamente que qualquer peça ou filme. Além disso, são de uma natureza mais sombria que os contos de fadas de nossa infância (os quais, aos revermos com olhos adultos, também parecem bem sinistros). Isto porque você é parte da história, e não um mero espectador. Você a está criando à medida que prossegue, e o resultado é sempre incerto.

O foco torna-se claro no ato de contar histórias, para o qual o autor apresenta especial zelo, mas estas histórias são contadas através dos personagens representados pelos jogadores diante das tramas da história.
Mais uma vez, como acontece com D&D e GURPS, a interpretação de personagens, o vencer desafios e o contar uma história se fazem presentes. Embora o foco em um ou outro possa variar, estes elementos podem ser encontrados em qualquer titulo do mercado.
Não é meu objetivo neste artigo alongar-me sobre a definição do que vem a ser RPG. Mas este esboço é suficiente para mostrar que os Jogos de Interpretação de Papéis nada mais são do que um passatempo onde seus participantes interpretam personagens fictícios, representando-os diante de desafios imaginários contando, assim, a história da trajetória destes mesmos personagens. Os tipos de personagens e de histórias, por sua vez, variam e acordo com cada livro, mas é fato que nada ali é real.
Esta conclusão baseia-se na tentativa de se construir uma definição de RPG baseada em um consenso de discursos, discursos estes produzidos pelos próprios autores destas obras quando se propõem a definir o que é RPG. Ao examinarmos a proposta destes escritores, é possível encontrar tais definições presentes nas três principais obras do gênero, examinadas neste trabalho, e também nos demais livros de RPG existentes no mercado . Obviamente, este consenso discursivo é fundamental para a compreensão do objeto aqui analisado, na medida em que não somente procura defini-lo de forma explícita, mas, também, busca também produzir (ou reproduzir) um comportamento entre indivíduos aos quais se destina o discurso (FOUCAULT 1979). O resultado ao qual tal discurso busca entre os jogadores de RPG é o mesmo já colocado: representar personagens fictícios vencendo desafios virtuais e contando uma história no processo.
É a partir desta definição discursiva que o RPG será analisado à luz das escrituras. Firmado tal conceito, a questão desloca-se a um paradigma teológico, a fim de responder a seguinte pergunta: à luz da bíblia, representar personagens, vencer desafios virtuais e contar histórias seria pecado ou impuro?



3. Crianças judias e suas brincadeiras

Arqueologicamente falando, as crianças de Israel não tiveram as mesmas opções de divertimento que as crianças de outras civilizações. Os brinquedos típicos eram bonecos ou bonecas geralmente feitos de argila ou barro, ou jogos de tabuleiro simples (com mecânica semelhante a damas, ludo ou gamão, por exemplo). Estes brinquedos eram tipicamente condenados pelos sacerdotes judeus daquele tempo, devida a associação de tais peças a imagens, cuja adoração era proibida, embora não exista texto algum do Primeiro (Antigo) Testamento tratando especificamente sobre brinquedos.
Desta forma, as crianças de Israel divertiam-se com toda sorte de jogos e brincadeiras, como amarelinha e pique. Mas entre estas brincadeiras, havia uma que interessa em especial ao analisar o RPG à luz da Bíblia. As crianças gostavam de representar tipos comuns da sociedade ou história judaica. Por exemplo, alguns meninos poderiam brincar de “Davi e seus soldados”, cada um representando um herói da história de Israel, e três crianças, dois meninos e uma menina, poderiam “brincar de casamento”: um representaria o sacerdote e os outros dois, o casal de noivos. Segundo GOWER (2003) este tipo de brincadeira de faz de conta era bem comum em Israel.
Para a sorte de quem procura entender o RPG à luz das Escrituras, no Evangelho de Mateus (capitulo 11, versículos 16 ao 19), Jesus teria dito algo interessante usando esta brincadeira como exemplo:


Mas, a quem assemelharei esta geração? É semelhante aos meninos que se assentam nas praças, e clamam aos seus companheiros, e dizem: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes. Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis aí um homem comilão e beberrão, amigo dos publicanos e pecadores. Mas a sabedoria é justificada por seus filhos.
O versículo não fala diretamente sobre RPG, evidentemente. Mas observe que Jesus usa como exemplo a brincadeira de “representação de papéis” das criancinhas judaicas (GOWER 2003). Em sua colocação, Jesus compara a insatisfação dos religiosos da época para com ele e João Batista (o primeiro come e bebe, enquanto o segundo era mais recluso em suas relações sociais, mas os fariseus não aceitaram nenhum dos dois) com a insatisfação de algumas crianças que brincam de representar papéis: não querem cantar quando se representa músicos entoando louvores, nem querem chorar quando se representa profetas entoando lamentações.
Observe que o cerne da passagem fala da constante insatisfação e dos fariseus. Entretanto, observe também que Jesus não condena a brincadeira de representar papéis das criancinhas, antes usando a má vontade dos que brincam como comparação a má vontade de uma parte dos religiosos da época.
De forma alguma se quer dizer, aqui, que, de acordo com o Evangelho de Mateus, não jogar RPG seria pecado. O que se quer ilustrar é que a brincadeira de representar papéis e contar histórias teria sido contemplada pelo próprio Jesus e até usada para ilustrar uma lição bíblica, mas em momento nenhum foi condenada por ele: muito pelo contrário, a insatisfação nas propostas da mesma é que se configura como mau exemplo.
Resta ainda, contudo, a questão do vencer desafios. Com relação a isto, não encontra-se nos textos bíblicos condenação alguma. Seria o mesmo que condenar alguém por jogar cartas ou futebol: o desafio nestes casos é vencer o outro (seja ele um individuo ou um time).
O RPG é tão mau quanto os jogos de cartas e de futebol. Ou seja, só depende de você.
Isto posto, demonstra-se que o RPG, por si só, não apresenta contra-indicação alguma nas Escrituras. Nas palavras do apostolo Paulo:


Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesma imunda, a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda. (Romanos 14:14).
Desta forma, o RPG por si mesmo não é mal algum. Muitos críticos o questionam por tratar de temas como assassinato, feitiçaria e mitologia mas, na prática, nada disso configura-se em realidade, já que tudo é fictício. Observe este texto de Marco 7: 20-23: 


E dizia: O que sai do homem isso contamina o homem. Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem.
Isto posto, o RPG não pode contaminar o ser humano, pois nada que vem de fora pode contaminá-lo, segundo diz o próprio Jesus. Além disso, como todo o jogo é virtual e imaginário, não existem absolutamente mal algum envolvido nele.
É preciso compreender, contudo, que estamos analisando discursos que definem um objeto e procuram produzir o efeito ao qual se destina. Entretanto, nem sempre o discurso, por mais que se destine a produzir um efeito, é bem sucedido no mesmo ou, mais importante ainda, deve ser tomado como uma verdade absoluta e inviolável (FOUCAULT 1996). Desta forma, seria muito ingênuo pressupor que todos os jogadores de RPG só estão interessados em se divertir e, em seus jogos, limitam-se a representar personagens fictícios, vencer desafios e contar histórias, jamais demonstrando traço algum de maus pensamentos, adultérios, prostituições, homicídios, furtos, avareza, maldades, engano, dissolução, inveja, blasfêmia, soberba e até mesmo loucura. Entretanto, não sendo esta a proposta dos Jogos de Interpretação de Papéis, nem o resultado ao qual ele busca produzir, mas, sim, traços humanos existentes inclusive entre quem não joga RPG, é um erro considerar que este brinquedo destina-se a produzir maus comportamentos, ao invés de observar que os mesmos são produtos de pessoas especificas.
A questão se agrava quando a levamos ao âmbito Teológico. Considerando a ausência de ensinamentos bíblicos que reprovem a atividade de interpretar papéis e, mais ainda, as afirmações de que a maldade contaminadora brota no coração do homem de dentro para fora, e não ao contrário, como pressupor que seria o ato de interpretar papéis, vencer desafios e contar histórias algo pecaminoso?
Ou seja, teologicamente falando, todos estes traços reprováveis já estariam enraizados dentro destes indivíduos. Muitos destes já demonstravam um ou mais destes comportamentos antes de jogar RPG e, mesmo que parem, continuarão a apresentá-los. De forma semelhante, muitas pessoas jogam RPG e não demonstram nenhum destes traços. Se do coração de um grupo de jogadores de RPG só provém o desejo de se divertir e passar algumas horas agradáveis com amigos, então não há pecado algum nisso. No fim das contas, é no homem, não no RPG, que repousa a maldade.



Conclusão
Demonstra-se, com estas colocações, que o RPG não é impuro ou imundo à luz da Bíblia, sendo que o próprio Jesus não criticou seus conceitos mais básicos (representar personagens, contar histórias). O mal, quando ocorre, é proveniente do coração de quem está jogando. A única situação onde o RPG pode ser nocivo é quando ele leva aos maus pensamentos, adultérios, prostituições, homicídios, furtos, avareza, maldades, engano, dissolução, inveja, blasfêmia, soberba e loucura e, neste caso, o cristão deve parar de jogar e procurar ajuda, conforme ensina Jesus em Mateus 18:9: 


Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem! Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.



Bibliografia

Bíblia de Referência Thompson. São Paulo: Vida 2002.
COOK Monte, TWEET Jonhathan, WILLIAN Skip. Livro do Jogador Dungeons & Dragons. São Paulo: Devir 2001.
FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
_____. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
GOWER Ralph. Usos e Costumes dos Tempos Bíblicos. Rio de Janeiro: CPAD, 2003.
HAGEN Mark Hein. Vampiro: a Máscara. São Paulo: Devir, 1994.
JACKSON Steve. GURPS. São Paulo: Devir 1994, página III.



Artigo de Silva Pacheco, professor de História de Israel e Sociologia do Seminário Teológico Filadélfia (STEF).

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ouro e Pó

No começo, aqueles gemidos incomodavam. Mas agora, eles estavam acostumados. Estavam presos naquele buraco a sabe Deus quantos dias, comendo suprimentos em decomposição.
A mina era antiga, os pais de quase todos eles tinham trabalhado nela. Velha, sim, mas tinha a estrutura mais resistente e impressionante que a única mulher dentre os trabalhadores, e única forasteira também, já tinha visto. Trabalhava com extração de metais desde o momento que conseguiu manejar com perfeição uma picareta, e, desde que seu pai morrera, ela viajava sempre que enjoava de uma estrutura.
Esta, entretanto, a fizera permanecer por cinco longos anos na mesma cidade. Agora, ela dizia para si mesma que devia ter ido quando teve chance. Mas a mina era incrível, e constantemente em expansão; cada vez mais fundo, ela mal tinha tempo de ver o mesmo setor por mais de uma semana. Casara com um médico, tivera dois filhos, o tipo de laço que uma viajante nunca poderia ter formado.
Agora, lá estava ela, sabe Deus quantos metros abaixo do solo, presa com cinco homens borrados de medo em uma curva que não tiveram tempo de transformar em qualquer coisa. Os outros, quase duzentos ao todo, estavam no corredor principal, gemendo em uma agonia, a princípio amedrontadora, mas agora simplesmente cansativa.
Ela se lembrava como se fosse a poucos instantes quando o grupo em que estava abriu um buraco para uma câmara gigantesca. Um enorme lago ficava quase no centro, deixando que a faixa de terra se alargasse à direita deles. Haviam destroços que pareciam de casas, fogueiras apagadas e uma espécie de cemitério.
Avisado sobre, o presidente da empresa em pessoa tinha decido até lá. Parecia feliz demais com aquilo, mandando que um grupo fosse até lá e revistasse tudo. A mulher estava na curva em que ficou trancada, escavando-a, quando o desgraçado passou correndo, as roupas rasgadas, sangrando, abraçado com força em um livro. Logo atrás dele, vinham cerca de mais que o dobro do grupo que entrara na câmara, todos gemendo e chorando. Ao vê-los passar, ela pensou que eles estavam machucados, mas conforme alguns ficaram, indo em direção aos outros mineiros, a mulher percebeu como eram.
Uma mulher parou bem enfrente a entrada da curva, desequilibrada. Sua pele era cinza, rasgada e purulenta, com larvas gordas se rastejando por cima e comendo-a, formando buracos e entrando. Um dos olhos era um buraco vazio, à exceção dos vermes. O maxilar estava preso apenas de um lado, balançando de acordo com o pender do corpo para frente e para trás. Ela gemia, e seu lamento era quase um choro. Assustada, a mineira, assim como seus companheiros, ficou paralisada, sem ao menos respirar, enquanto a mulher se decompondo tomava a direção oposta.
Mas agora o medo não superava a fome, o cansaço, a saudade e a preocupação. Decidida, comunicou o que iria fazer e levantou-se. Pegou sua picareta e rumou para a entrada da "gruta" sem esperar qualquer apoio de seus companheiros. Ela sabia que assim, eles a seguiriam sem questionar; eram frouxos demais para correr o risco de nunca mais sair por medo de tentar. E, exatamente assim, o fizeram.
Sabe Deus lá qual a chance deles realmente conseguir, mas ela preferia não pensar. Apenas segurou sua picareta com força e, quando saiu pro corredor, esperou que aquelas coisas se virassem na sua direção. Não precisou esperar mais que segundos. Ela só não contava com duas coisas: que suas pernas estivessem tão fracas e que os monstros fossem tão rápidos.
Rezando para que as larvas tivessem amolecido o crânio, ela bateu com a ponta da picareta com toda a força que possuía no lado da cabeça do primeiro que se aproximou. Surpresa, viu a ferramenta entrar e sair como se atravessasse um monte de terra. Sangue, miolos e pedaços de ossos voaram para todos os lados, e o corpo caiu, tremendo, mas sem qualquer gemido.
Sempre atacando, os seis avançaram. E sempre atacando, cinco deles viram o último ser derrubado quando uma daquelas coisas lhe puxou a perna. E sempre atacando, eles não conseguiram ajudar o mineiro da coisa sem pernas que lhe mordeu a panturrilha, nem a outra que caiu de joelhos e lhe rasgou o abdômen com as unhas.
Eles se perderam uma vez, entrando em uma curva antes da que deveriam, e viram outro colega perecer por causa disso. E logo após a terceira morte, eles puderam avistar a luz do sol. O vento quente do deserto lhes lambendo a pele, levantando uma camada de areia que lhes arranhava as canelas.
Ainda ouviam com perfeição seus três mortos implorarem por ajuda, gritando de dor e desespero. As lágrimas manchavam seus rostos, entrecortando a sujeira de suas faces.
Antes de partirem para a cidade, tentando se lembrar das ações do marido, a mulher amarrava pela terceira vez um ferimento no braço de um dos homens com a camisa rasgada do outro. Fora mordido lá dentro, e o ultimo companheiro morrera salvando-o, mas nada parecia estancar o sangue.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

As Onze-Horas

A menina corria pelo jardim. Sorria feliz, pelo mundo que era só seu. As onze-horas eram suas únicas amigas, as únicas que lhe ouviam, que lhe dirigiam palavras sinceras e amigas. Ali, ela era ela mesma, podia brincar de que tinha asas coloridas de borboletas, cabelo rosa e antenas. Era apenas ali, junto às onze-horas, que ela se sentia feliz.
Seu mundo cheio de cor, brilho e luz, entretanto, existia apenas uma hora por dia. Enquanto as outras crianças ganhavam visitas, esperando serem adotadas, a menina era escondida nos fundos. Ela tinha mãe, a grande rainha daquele castelo feio e escuro que chamavam de "ortanato".
Pequena e magrinha de mostrar as costelas, a menina não devia ter mais de 3 anos. Não que ela tivesse qualquer noção disso ou que alguém soubesse, ninguém estava contando mesmo. Mas já era capaz de ajudar limpando os sanitários, passando cera, ou qualquer outra coisa que sua mãe mandasse. E aí dela se não fizesse tudo rápido; apanhava e ficava sem janta. O problema é que as onze-horas passavam o dia lhe chamando, e sempre que passava por uma janela, a menina não conseguia não olhar, e às vezes ela não conseguia parar de olhar... ou não parar de olhar antes de sua mãe a encontrar.
Mas a menina não se importava. As onze-horas lhe contavam sobre o mundo além daqueles muros, e lhe acalentavam a dor e a fome. Mesmo que os roxos ainda estavam ali, marcando sua pele áspera, o dolorido ao toque desaparecia. As borboletas flutuavam em volta. Os besouros, formigas e outros insetos também. Todos vinham para conversar, lhe contar histórias, e, mesmo que com pressa, sempre lhe cumprimentavam.
Era assim que ela estava, agora: sentada com as pernas cruzadas, rindo e conversando. Nem viu quando alguém se aproximou. As flores e os bichinhos viram e gritaram, mas era tarde demais. Uma mão forte agarrou o braço da menina e a levantou. Era um homem feio, barbudo, magro e com olhos maus. Ela podia ver uma coisa preta, enorme, atrás dele; uma coisa que a assustava.
"Gostosinha, tu, heim?!", disse ele, olhando-a de cima a baixo. Tapou sua boca, perguntando se ela "vai gritar não, né?". Derrubando-a no chão, beijou-lhe o pescoço, roçando a barba comprida. Sempre com uma das mãos em sua boca, colocando peso sobre ela, ele lhe rasgou a blusa e esfregou o rosto por seu peito e barriga.
Assustada, seus gritos abafados foram ouvidos apenas por seus amiguinhos; somente eles viram suas lágrimas. As abelhas vieram voando rápido, os ferrões erguidos, e ela gritou para que elas parassem, que iriam morrer se atacassem o homem, e elas pararam no mesmo instante, zumbindo com raiva, mas dando ouvidos ao pedido dela.
O cheiro das onze-horas, então, ficou cada vez maior. As ondas de um sono calmo começaram a lhe banhar, e ela sentiu o peso do homem aumentar até ele cair adormecido sobre ela. Ela também estava caindo no abismo da inconsciência quando ouviu as flores lhe mandarem comer.
Seu olhar se abriu em uma caverna escura e úmida. Ela estava em uma sala ampla e alta, sangue pingava do teto e se acumulava em poças no chão. Em um canto estava um vulto encolhido, chorando; portas tomavam todas as paredes, cada uma com uma inscrição com letras e números, mas era até aí que a menina conseguia interpretar. No centro, sozinho, um copo-de-leite crescia solitário.
Já não havia medo em seu coração, mas a menina ficou surpresa com a fome que lhe assolava. Sentiu pena da criatura que choramingava nas sombras, longe da luz clara que a flor branca produzia. Mas a fome era mais forte, e ela avançou para uma das portas, procurando comida.
Na primeira, encontrou um travesseirinho, uma mamadeira e um ursinho de pelúcia. Comeu-os, sentindo o gosto de chocolate tomar conta de sua boca. Haviam brinquedos de bebês, roupinhas e um berço, que ela comeu tudo. A criaturinha encolhida no canto gritou de dor, mas a menina não conseguiu se importar. Na segunda porta haviam carrinhos, skate, bicicleta e uma cama em forma de foguete espacial, e tudo tinha gosto de bala de goma. A terceira, a quarta, a sétima, a décima porta. Ela entrou em todas, e comeu tudo. A criatura parecia encolher a cada porta, e gritava mais alto a cada dentada que a menina dava em algo, e logo ela começou a sentir prazer em ouvi-la chorar. Saboreou tudo, inclusive as lamúrias e os berros, mas sua fome não morria. Nem ao menos minimizava.
Lambuzada e grudenta, sentada dentro da ultima sala, ela olhou para o copo-de-leite. Sua mãe tinha lhe dito para nunca tocar nessas flores, e sua mãe tinha umas quantas dessas no jardim da frente. Mas sua mãe não estava ali, e ela estava com fome. A coisinha no escuro gritava muito alto agora, e a menina não conseguia pensar. Só que, também, ela não queria nem precisava pensar. Simplesmente queria e precisava se levantar, caminhar até a flor e come-la. E assim a menina fez.
Quando engoliu o ultimo pedacinho verde do caule, ouviu um ultimo grito de dor e o silêncio absoluto. A caverna à sua volta oscilou, e começou a desaparecer. Novos sons ecoaram dentro de sua cabecinha, e uma luz avermelhada atravessou suas pálpebras fechadas.
Ela acordou no gramado. Pessoas corriam em sua direção, e o homem mau ainda estava em cima dela. Sua mãe se aproximou gritando e chutando o corpo inerte do homem. Abraçou a menina como nunca havia abraçado, repetindo e implorando que nada tivesse acontecido com sua pequena.
Uma outra mulher chegou perto do homem, lhe tocou o pescoço e o pulso. A menina não sabia o que aquela senhora de branco estava fazendo, mas disse em voz alta que "ele está morto", e a mulher concordou com um aceno de cabeça. A boca de sua mãe mexeu contra seu couro cabeludo, e ela ouviu-a dizer que era "graças a Deus".
"Foi graças às onze-horas, mãe", a menina respondeu.