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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Duas Horas de Avião

Trocamos um olhar de cumplicidade. Estava deitado no ombro dela, minha mão sobre seu plexo solar. Seus lábios contra minha testa, terminando uma pequena mordidinha. Tínhamos rido pelos pescoços um pouquinho desconfortáveis por ter dado um beijo carinhoso, mas meio torto. Eu tinha deitado em seu ombro assim que ela esticara suas costas na cama.
Ela acordara sozinha, não quis mexer nenhum milímetro da posição dela. Cochilara deitada em cima de mim, sua cabeça repousando contra meu peito, uma de suas mãos ainda tocava meus lábios, a outra relaxara, em um arranhão que não se completara, junto à minha cintura. Suas coxas pressionavam leve meu tronco, e suas panturrilhas, minha bacia, num toque que não permitia-me relaxar o suficiente para que a nossa conexão se desfizesse.
Ela deitara a cabeça depois de morder minha clavícula. Rechaçou minha mão quando tentei tocar seu rosto, enquanto ela ainda estava apenas curvada para frente, suas mãos apoiadas em meu peito. Havia abaixado a cabeça, escondendo seu rosto, relaxando as costas que estavam forçadas para trás, o queixo apontando para o teto, suas unhas cravadas nas minhas coxas.
Eu havia acabado de esticar as pernas e deitado a cabeça no travesseiro. Tentei controlar a respiração para não perder de vista cada movimento seu: ela havia esticado as costas, enquanto pressionava os dedos no meu rosto, arranhando-o de leve e sem perceber, enquanto ofegava pesado. Beijando meu pescoço, ela nos colocou em conexão, enquanto eu puxava seus cabelos na nuca e arrastava a mão em suas costas, da bacia às omoplatas.
Caímos sem que nossos corpos desencostassem um do outro. Meu corpo havia tombado em sua cama, desestabilizado de seu equilíbrio ante o peso que ela exerceu propositalmente contra mim. Entramos em seu quarto sem que eu tivesse registrado qualquer coisa em sua casa. Nossas bocas não se desligaram desde o primeiro toque. Ela mordeu meu lábio ao ouvir o som do baque, prevendo meu gemido de dor. Havia topado com o perônio contra provavelmente uma mesinha de centro.
Ela me puxava, andando de costas, os braços em torno do meu corpo, suas mãos desvendando meu corpo por baixo da minha camiseta. Meu peito foi arranhado por cima da camiseta. Seu olhar parecia tentar ler a minha alma e meus pensamentos através dos meus olhos. Ela mordeu meus lábios, no canto da boca, com um pouco forte demais. Suas unhas arranharam forte a minha nuca, enquanto ela pressionava, a boca fechada, seus lábios contra os meus, nossos narizes pressionados um contra o outro que mal me deixava respirar.
Me puxara com força para ela, sua mão segurando firme a gola da minha camiseta. Seu rosto se iluminou em um sorriso sacana, que nascera transparecendo uma felicidade quase inocente logo depois de seus olhos escanearem meu rosto. Parada ao umbral, ela estava linda naquela roupa largada, confortável, de ficar em casa. Ela havia aberto a porta, sem qualquer interesse, pouco tempo depois que toquei sua campainha. Agora, deitado em seu ombro, com a maça do rosto contra seu busto, eu olhei para seu rosto.
Ela sentiu meu movimento, e virou a cabeça na minha direção. Sorriu. “Eu nem cheguei a te cumprimentar, né?! É um prazer te conhecer, moço”.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Roland - Parte 6

Roland já não dormia tanto; aos poucos seu sono se tornara mais controlado. Tinha passado a acordar quatro ou cinco vezes por dia: ao amanhecer, pelo começo da tarde, ao anoitecer e pelo meio da noite. Certa feita, ele foi obrigado a perguntar porque já não dormia tanto.
- Parei de te dar caldo de dorme-dorme. Já não necessitas mais, não sentes mais tantas dores.
- E como sabes?
- Não gritas mais durante o sono – disse a bruja, sorrindo.
- Ficaste me cuidando enquanto dormia? - Roland tentou um tom de desafio descontraído. Aos seus ouvidos treinados para perceber a própria voz, pareceu que tentava seduzí-la.
Ela apontou para o restante da pequena casa. Era uma peça, apenas. A cama em que estava deitado ficava de frente à uma mesa de dois lugares. À sua direita havia um fogão à lenha, aos pés dele, no chão, um colchão de palha. Não havia qualquer outra coisa ali.
- Deve estar sendo ótimo dormir ali... - disse, irônico.
- É ali que durmo. Esta cama eu fiz pra ti.
Roland não respondeu, preferiu mudar de assunto... bruscamente.
- Porque me cuidas?
El hombre en negro me disse que esta escolha deveria ser tua, não minha.
- Que escolha?
Ela se aproximou, chegou seu rosto bem próximo ao do dele. Entre salvá-la ou assassiná-la: essa era a escolha; soube sem que ela respondesse. Finalmente ele era capaz de ver seu rosto, e não havia qualquer traço de velhice como ele lembrava. A bruja era jovem e bonita, com um sorriso sincero e um olhar...
O cabelo dela caía sobre metade do rosto, mas ainda assim Roland notou algo estranho no olho encoberto. Tentou afastá-lo com as mãos, para ver a face dela por inteira, mas ela se afastou como que assustada. Instintivamente, algo passou pela cabeça do gaucho.
- Achei que bruxas só morressem quando queimadas até virarem cinzas; que nada mais as ferissem.
- Não é um ferimento...
- E o que é? Parece cicatriz de feitiçaria
Ela se calou. Era a resposta de que Roland precisava.
- Me conte, por favor.
A bruja abriu a boca, hesitou, e fechou novamente. Fez isso duas ou três vezes, parecendo procurar as palavras certas.
- Não irá me influenciar na minha decisão – e foi o que ela precisava ouvir.
- É um pacto de sangue.
Roland sabia o que aquilo significava.
- O velho... - perguntou, reflexivo.
Em silêncio, ela balançou a cabeça, em afirmativo.

*

Roland entrou no pequeno vilarejo com os passos mais firmes que sua condição ainda debilitada lhe permitia. Toda a animalada procurou sair para longe; ficaram em seus lugares apenas o pequeno rato e o jovem corujito.
Qué pasa! - gritou o corujo
Buenas! - respondeu Roland, ignorando a ameaça na voz do outro. Ergueu a mão em cumprimento.
- Passa daqui, que não é mais bem vindo. Te emancebou com a bruja.
- Quero ter com o velho pai,
- Não! Traíste a confiança que foi depositada em ti – respondeu o corujo, parando na frente do pistoleiro.
- Abre!
- Não... - havia satisfação e desafio naquele tom de voz.
Roland não tinha por índole repetir duas vezes quando era desafiado, muito menos abrir discussão com piazote que mal havia saído das fraldas. Puxou de seu facão, o com a lâmina azulada, e deu de estouro do lado da cabeça do rapazote. O impacto fez ferver o rosto do metamorfo, que cambaleou para trás e caiu atordoado ao solo.
- O que tu fez! - gritou o rato, se aproximando. A resposta de Roland foi desviar de ambos e seguir seu caminho.
O rosto do corujo ainda fervia. Aquela marca nunca sairia. O pistoleiro sabia disso, e fez esperando que por toda a vida o corujito lembrasse daquele dia. Entretanto, se o corujo aprendeu, os outros ainda não. Se haviam evitado a presença de Roland, agora se reuniam à sua frente. Defenderiam o irmão: o pistoleiro apreciou a união, mas riu-se por dentro da ingenuidade.
Um a um, eles investiram. Um a um, Roland os derrubou com estouros de facão. Mas foi mais leve com estes, agora. Atacavam por uma boa causa. O pistoleiro procurou evitar o rosto e outros lugares mais visíveis, focando sempre que possível às costas. Agora o barulho de coisa fervendo preenchia toda a clareira. Todos os metamorfos estavam caídos e marcados.
Mas fora esforço demais: as costas do pistoleiro começaram a doer, e suas pernas à falhar. Mesmo assim, ele continuaria até a casa do velho. Morreria lá dentro, se fosse estivesse fadado à falhar, mas não voltaria atrás.
O velho certamente ouvira a confusão, pois saíra de casa armado de um grande facão de osso. Vendo o pistoleiro caminhando com dificuldade em sua direção, percorreu o restante do percurso falando:
- Pelo que vejo – e olhou para trás de Roland – vancês muy que confabularam. Tanto que ela te levou pra seu lado. Me pregunto se tu foste um tongo que te entrega por palavras, ou se ela deixou que tu a encobrisse – sua voz era baixa e ríspida.
- Cala-te, velho imundo! Que fizeste à tua própria filha? - o pistoleiro manteve o mesmo tom do velho.
- Tonteria!
- Tonteria? Então é neta! Por pior ainda!
- Cala-te, que de nada sabes. Solo quiero lo qué es miyo! Ela tem seus poderes por minha causa. Nada mais digno que me devolvê-los!
- Um pacto de sangue, seu verme imundo! Com uma menininha!
- Verme? O farrapo se apaixonou por uma chinoca de beira de estrada e quer me dar lição de moral!
Roland investiu contra o velho, a faca em punho. O velho desviou uma lâmina com a outra, com a mesma facilidade que um jovem faria.
- Vá-te, hombre, e te deixo viver. Já viste tudo que queria!
Foi quando o pistoleiro entendeu o tom baixo: nenhuma daquelas crianças sabia sobre aquilo. Olhou para trás, esperando que alguém acompanhasse aquilo, mas todos tentavam se ajudar. Péssimo momento para se preocupar em revelar à aldeia um de seus mais bem guardados segredos.
O velho desferiu um golpe com a sola de seu pé esquerdo, esticando com grande força e velocidade sua perna para frente. Rolando caiu no chão e rolou sobre si antes de bater com força a nuca na terra batida. Foi impacto suficiente para deixá-lo um tanto atordoado. O preto velho se aproximou e chutou-o duas vezes na lateral de seu corpo, fazendo-o girar.
- Vejam, meus filhos! A morte do traidor! Esperei dele a vitória contra a bruja que tanto nos odeia sem motivos, mas fui apunhalado pelas costas! Ele veio para cá buscando nos destruir, mas não terá sucesso em seu intento!
Péssimo momento para discursos. Da única vez que olhou para o grupo de metamorfo, mesmo sem levantar a cabeça, o pistoleiro agiu. Cravou seu facão azulado e afundou-o até o cabo na coxa do velho. Não houve qualquer reação, e Roland afrouxou as mãos. Com aquela mesma perna, o velho lhe chutou, fazendo o corpo do homem levantar do chão.
- A faca! Vejam! - gritou o ratinho. - É a mesma que queimou nossa pele, mas nada faz contra o grande pai.
O pistoleiro riu, cuspindo sangue. O velho lhe chutou mais duas vezes.
- Seu merda! - o velho sussurrou.
- A bruja os ataca porque ele suga o poder dela. - disse Roland, o mais alto que pode.
- Não acreditem! Ele tenta nos cofundir!
- Tu sabias que ela já perdeu um olho nesse seu joguinho?
- Cala-te!
- Ela não quer o mal desta aldeia! Quer apenas ser liberta da dor causada por est... - e foi interrompido com mais um chute.
O que o velho não contava era que Roland havia agarrado a faca presa em sua carne, e a segurava com toda a força que lhe restava. Ao chutar o corpo do pistoleiro, o velho força sua perna contra a lâmina da faca, que desce rasgando sua pele e seus músculos até a altura do joelho.
- Não te causa dor, nem te provoca agonia, mas te debilitas como a qualquer um – disse o pistoleiro, rolando o corpo para mais longe do velho.
- Tolo! O poder dela me regenerará! - gritou, erguendo os braços e a cabeça. No mesmo instante o ferimento da coxa, de onde não saiu um filete sequer de sangue, começou a ferver e a fechar.
- Tolo és tu! - gritou Roland, puxando seu revolver, o também azulado, e atirou.
A bala foi certeira à cabeça do velho, entrando pelo queixo e saindo pelo topo. Sem qualquer gemido ou lamento, o corpo caiu com um baque seco. Deveria estar acabado.
- Eu te vejo – disse o corujo, se aproximando. Com as mãos firmes ajudou o pistoleiro a se levantar – Temos o que confabular.
Roland assentiu com a cabeça.
- Mas, primeiro, um mate – e sorriu com os dentes cheios de sangue.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Esquizofrenia - Capítulo 2 - Parte 4


Rômulo correu pelos corredores. Fazia uma vaga ideia do que deveria fazer. Em sua mente, o pedido de Freeman ecoava: tirar Jonathan Blake do hospital, fazê-lo lembrar-se do livro, e levar ambos para longe de Valence.
O quarto de Jonathan ficava no quarto andar. Mesmo por elevador, seria impossível chegar ao quarto dele antes da medicação. O que o homem não conseguia entender é como não fora acompanhando os enfermeiros até o quarto. Era uma de suas obrigações, e fora por ela que o velho o chamara para aquele pedido; assim como Nia, a enfermeira principal daquele corredor.
Eles haviam combinado que Rômulo distrairia, de uma forma ou de outra, o grupo, para que Jonathan fugisse. Nia o encontraria e o levaria para fora do hospital. Eles ficariam escondidos até Rômulo se liberar da confusão (ou fugir, se fosse preciso) e ir buscá-los. Em sua casa, já estavam separados os suprimentos todos que precisariam para a viagem, todos devidamente guardados no porta-malas de seu quarto. Nia já havia, inclusive, levado uma mada com suas roupas e outra com as de Jonathan. O segurança sempre acho muito estranho a maneira carinhosa da enfermeira com o paciente. Para o homem, aquele rapaz não passava de um débil mental qualquer que não possuía qualquer atributo capaz de despertar o amor de uma mulher; mas ele não estava ali para julgar ninguém, apenas para cumprir um pedido de alguém que lhe fora tão importante.
Merda! O elevador não funcionava. Em frente às portas, Rômulo insistia apertando os botões, mas nada acontecia: nenhuma luz, nenhum barulho. Foi quando se deu conta do mais óbvio: o hospital inteiro estava sem energia, usando geradores para não desligar as máquinas dos pacientes e permitir que os funcionários transitassem pelos corredores. Era estranho que um hospital tão grande tivessem baterias tão fracas, e Rômulo não acreditava nas palavras de Landau sobre a reforma em toda a fiação e a futura instalação, assim que a reforma fosse concluída, de mais geradores. Para o segurança, aquilo era desvio de dinheiro...
Sobravam apenas as escadas. Rômulo atravessou o mais rápido que seu corpo envelhecendo lhe permitia. Já não era mais o jovem que começara a carreira naquele mesmo hospital, mas ainda assim não demonstrava fisicamente a idade que tinha.
Uma quadra. Era como chamavam os blocos de quartos e salas. Faltava apenas uma quadra, quando Rômulo avistou uma sombra. Parou de correr, controlou a respiração o melhor que pode, e se aproximou. Ele não era de falar, cumprimentava apenas com a cabeça os demais funcionários: pensou em dizer oi, mas tornaria aquilo tudo muito suspeito. Apenas continuou caminhando.
A pessoa à sua frente estava com a cabeça abaixada, os o ombros quase curvados. Rômulo quase colou na parede e continuou andando. Virou o rosto: perguntar se estava tudo bem poderia resultar em uma resposta que o faria se atrasar mais. Preferiu fingir que não viu.
Alcançou o primeiro degrau da escada, virado totalmente de costas para a pessoa, que não o importunou. Seu pé se deslocava para o segundo, quando sua mão foi agarrada. Por instinto, puxou o braço, que não se soltou do aperto, e olhou para trás.
A criatura atrás de si não estava com a cabeça abaixada. Não havia cabeça nenhuma, apenas um cotoco de pescoço. O corpo era magro, como se a pele estivesse toda grudada nos ossos, permitindo o abdômen retraído quase o suficiente para revelar a coluna. E justamente no abdômen havia, na altura do estômago, uma boca escancarada, com dentes perfeitamente alinhados e uma língua que lambia convulsivamente os lábios. Daquela coisa vinha o som de um gemido vazio que lembrava um estômago roncando, reagindo à fome.
Por instinto, Rômulo girou o restante do corpo, acertando a criatura com o solado de suas botas. “Um chute na boca do estômago”, sua mente em terror conseguiu pensar. Seria uma piada em qualquer situação menos aterradora, mas serviu apenas para deixar o segurança mais apavorado. Seu corpo estremeceu num calafrio, e o segurança subiu o restante das escadas à passos largos, pulando de quatro em quatro degraus, numa necessidade irracional de fugir.
Era impossível, tudo aquilo era impossível. Sua mente atordoada pelo medo tentava processar e aceitar a criatura. Pisou no primeiro pavimento, ou segundo andar. Foi quando ouviu vozes de criança. “William louco. Matou a mãe com um machado como um tronco oco. William louco. Com as mãos sujas, de alegria, gritava rouco.” Sobressaltou-se, as lembranças do sonho vindo em jorros, fazendo-o perder o equilíbrio. De alguma forma, manteve-se em pé, continuou correndo. As vozes se aproximaram, vinham de um corredor à direita.
Rômulo dobrou o primeiro à esquerda. Não lhe passou pela cabeça que poderia ter continuado subindo as escadas.

Agressão


Ele dormia profundamente, mesmo que apenas ressonasse: eu sabia que tinha o sono pesado. Mesmo assim, levantei da cama o mais cuidadosamente possível.
A porra que escorrera de dentro de mim para a parte interna das minhas coxas já estava fria, mas ainda era pegajosa. A sensação das pernas melecadas e grudando não me incomodava, em outros tempos eu até me sentiria feliz com isso; saber que era um fluído corporal dele, ali, também não incomodava: me causava nojo.
Não importava quantas vezes eu já tenha ido à polícia, quantas vezes tenha denunciado, ele nunca foi preso. Nunca retirei nenhuma das queixas, mas ele nem mesmo respondeu processo. De alguma forma, minha palavra nunca foi mais forte que a dele: para todos os efeitos, sempre foi consentido. Ser amarrada e amordaçada era joguinho sexual, apanhar também.
Uma vez ele apareceu todo machucado na delegacia para depor. As costas com arranhões tão fundos que pareciam cortes à navalha, um olho roxo, a boca cortada e as bolas inchadas. “Olha pra mim, delegada! Olha o que ela faz comigo!”, dizia ele, “A gente curtimu essas coisas, sabe. A senhora é casada, a senhora deve entender. São nossos joguinhos. Ela bate ni mim à valê purque eu gosto. E ela pede, otoridade, pr'eu batê nela tumém”. A própria delegada me contou isso, quando fez a acareação. Mesmo comigo desmentindo tudo aquilo, ela chegou a dizer para eu parar de mentir, se não ele teria todo o direito de me processar por calúnia e difamação.
Agora ele estava ali, dormindo profundamente na cama. O corpo intacto, sem qualquer ferimento ou machucado. Eu, em pé no meio do quarto, observando aquele monstro, tinha o canto da boca cortado – quando ele enfiou os quatro dedos entre meus dentes para eu não fechar a mandíbula, e puxou meus lábios para trás, abrindo espaço para enfiar até a minha garganta, me fazendo engasgar com aquele pedaço sujo de carne e com meu próprio vômito, que ele não se importou se jorrar por cima de si –, o rosto dolorido – dos tapas e socos – os antebraços e as mãos inchados e ainda dormentes – das cordas que ele usou para amarrar apertado meus braços às costas, impedindo a circulação –, e as pernas doloridas e bambas – também devido aos cordames.
Já fazia um ano que tinha parado de denunciar. Ele havia ameaçado a minha família, e eu sabia que era capaz. Logo que casamos, eu peguei ele na cama com outras. Tudo que ouvi dele era que ficaria tudo bem, que ele resolveria. Uma apareceu no jornal, dada como desaparecida, e acho que nunca encontraram o corpo. Uma outra, morta. Nessa época ele me batia fora do sexo, e não por qualquer coisa. Eu achava que eu era a errada, que eu que o tinha irritado, que ele era o homem bom que eu achei que fosse antes do casamento. Mesmo ele me traindo, eu aceitei, por um bom tempo, como coisa de homem.
Foi então que eu explodi, quando o peguei com uma menina de 16 anos. Eu voei nele, dei-lhe tapas onde pude alcançar, gritando que nunca maios aceitaria aquilo. Mas ele segurou meus braços e disse que ficaria tudo bem, que iria resolver. Quando tentei reagir, ele me deu um tapa no rosto que me derrubou e me deixou tonta. “Eu disse que resolvia, porra!”, ele gritou e saiu do quarto, nos deixando sozinhas. A menina ainda estava no canto da cama, o lençol cobrindo o corpo. Nos olhamos por um momento. Seus olhos estavam apavorados, e lágrimas de medo escorriam por suas faces. Então ele retornou, trazendo algo nas mãos que não pude reconhecer. Parou entre eu e ela, erguendo a mão em direção à cama. “Pam! Pam!”. O cheiro terrível de coisa quente ou queimada encheu meus pulmões, e ele saiu novamente do quarto. Eu desviei os olhos, mas havia visto o suficiente: da menina, vestia sangue do peito e da cabeça. Não era preciso ser a mulher mais inteligente do mundo para entender que ele havia matado todas as outras.
Eu pedi o divórcio, mas ele negou. Disse que, se era assim, ele não me trairia mais, que faria comigo tudo que ele fazia com as outras. Se eu não era capaz de entendê-lo, de entender que ele me respeitava como mulher, como esposa, que se eu queria ser tratado como uma vagabunda qualquer, era assim que seria. Eu tinha boca, cu e boceta, serviria tanto quanto qualquer outra para o que ele gostava, já que eu não queria mais me dar ao respeito de entendê-lo.
A primeira noite foi horrível, e nenhuma das outras foi melhor. Ele disse que eu me acostumaria, mas nunca me acostumei. Que eu, como qualquer das outras vadias, acabaria gostando daquilo. Mas meu sistema digestivo todo doía, os hematomas me envergonhavam... até que ele quebrou meu braço. Oficialmente, eu caí da escada. Extraoficialmente, ele me arrastou para o quarto, dobrou propositalmente meu braço às minhas costas até ouvir o estalo. Então forçou mais, para ouvir o segundo, o terceiro. O braço cedeu de vez, ele parou; mas a dor foi tão grande que eu desmaiei. Quando acordei, estava toda suja de esperma por todo o corpo. Ele mandou eu me lavar e não dar um pio quando chegássemos ao hospital...
Mas eu contei. Assim que ficamos sozinhos, médico e eu, eu contei tudo. Foi a primeira vez que paramos na delegacia. Contei tudo que sabia ao delegado, que fez todos os procedimentos possíveis e disse que aquele verme nunca mais tocaria em mim. Dois dias depois, ele é encontrado morto, o corpo já apodrecendo dentro de uma caixa d'água. Nunca mais ninguém fez nada para me ajudar.
Tinha oito anos que éramos casados, e cinco desde que ele começou a me bater todo o dia, praticamente a todo o momento. Eu tentei me matar, mas da primeira vez fui salva por uma vizinha, que mesmo sabendo pelo que eu passava, não quis se intrometer. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Ele não ficou sabendo. Da segunda vez, ele me encontrou sangrando, com os pulsos cortados. Quando acordei no hospital, ele estava ao meu lado. “Feio esses corte... O dotor disse que talvez tu não mexa mais as mão direito. Só te digo uma coisa: se tu tentá fazê isso de novo, tua mãe morre! E outra, vô pagá a fisioterapia, mas se tu, em seis meses, não tiver batendo direitinho uma pra mim, quem morre é teu pai, qu'eu sei que tu nem gosta tanto assim do véio, tu aprendê a deixá de besta.”
Depois disso, ele disse que tinha cansado de dar “migué” em polícial pelas minhas frescuras: ou eu parava, ou morriam meus pais como aviso; e se eu tentasse de novo, quem “dançava” eram meus irmãos; e se ainda assim eu não entendesse, iam meus sobrinhos; só em último caso ele me mataria, mas antes faria eu desejar a morte a cada segundinho após ter feito a próxima denúncia depois daquele aviso. A brincadeira tinha sido divertida, mas já tava enchendo.
Mas ele fez o favor de me fazer desejar morrer a cada instante desse ano. Começou a trazer qualquer homem pra dentro de casa, pra transar comigo. Começou a me vender para quem quisesse, e me dar de graça para aqueles que não podiam pagar. Eu sempre estava amordaçada e amarrada. Algumas vezes ele também me vendava, outras me pendurava pelos braços. Todo o tipo de equipamento começou a ser usado em mim, até que eu quase perdi um mamilo. Depois que saí do hospital, com todos os procedimentos feitos, ele me obrigou a vê-lo bater no cara que quase me mutilou até matá-lo com as mãos nuas.
Levei muito tempo para reunir coragem o suficiente para fazer aquilo, mas finalmente havia conseguido. Saí do quarto, atravessei a casa e fui até o galpão. Havia um machado lá, e eu tinha sido criada cortando lenha... Se eu voltasse ao quarto antes dele acordar, teria uma única chance de relembrar como se partia uma tora. Não que tivesse medo que ele pudesse reagir e me impedir de alguma coisa, mas não sei se teria coragem para um segundo golpe.
Entrei de volta ao quarto. Ele nem ao menos havia se mexido. Acendi a luz: a claridade da janela não seria o suficiente. Ele acordou se piscando, se virou de barriga para cima. Ergui o machado enquanto ele erguia o braço para defender os olhos da luz. A lâmina desceu rasgando o ar num zunido pesado. O barulho foi um misto sólido, que me lembrou o som da madeira sendo partida, e gosmento, como o de um excremento caindo na água do sanitário.
Apenas soltei o cabo do machado. Reuni minhas roupas e joguei no porta-malas. Tomei um banho quente bem demorado, como não tomava à anos, e me vesti com a melhor roupa que eu tinha. Peguei todo o dinheiro que havia em casa, assim como todos os cartões. Nunca havia tirado a carteira de motorista, mas ser presa por dirigir sem saber não seria nada perto do que me aconteceria quando achassem o corpo. Na verdade, agora eu estava livre como jamais estive na vida, então nada mais me importava.

À Noite


Estávamos sentados em cadeiras de praia, à seis passos da porta da frente, já fora da cobertura da área. Era uma noite fria, e mesmo assim eu estava de bermuda e ela de regata. Olhávamos para a lua escondida atrás dos galhos das árvores do pequeno pátio, bebendo cada um uma lata de cerveja quase tão gelada quanto minhas pernas.
Eu me sentia uma garotinha, como as irmãs dela que dormiam silenciosamente dentro da casa. Era a minha primeira cerveja e a zilhonésima quinta dela; isso que tínhamos um ano de diferença encobertos pela mesma série na escola. Conversávamos sobre qualquer coisa, sentados com pouco espaço entre as cadeiras.
Ela me contava sobre algum menino com quem tinha ficado, eu falava sobre alguma “ex-namorada de dois ou três meses”. Ela falava sobre amigos, futebol e a vida. Eu pensava o quão ridículo ela devia me achar sempre atulhado no meio dos livros, de games, computadores e jogos de tabuleiro. Ela pintava o cabelo com papel crepom para sair de noite, enquanto eu limpava os óculos para assistir TV até a hora em que ela voltasse para casa; quando ela chegasse errando a chave, eu correria da sala até a cozinha e abriria a porta antes que ela tentasse acertar a fechadura uma segunda vez; Eu ofereceria fazer-lhe um café forte, ela me mandaria dormir dizendo que estava bem, e eu teria que apoiá-la até seu quarto.
Aquilo – o frio, a cerveja e a voz dela – estava me entorpecendo de uma maneira agradavelmente desagradável, e de forma consentida eu me deixava levar como se cedesse à um confortável e inoportuno sono. Foi quando ela me perguntou o porque eu estava tão quieto e, sem sentir, eu lhe perguntei o porque não nos dávamos tão bem.
- Como?
- Porque não nos damos bem? Porque tu não gosta de mim?
- Eu gosto de ti...
- E porque me dá tão pouca atenção?
- Como pouca? A gente tava conversando até agora... A gente, só, sei lá, não tem tanta coisa em comum, talvez.
- É...
E o silêncio tornou a nos encobrir com seu véu triste. Eu me perguntava o porque aquela maldita latinha não tinha fim, enquanto ela bebia com a calma de quem sabe que a cerveja não vai esquentar. Naquele silêncio desagradável, ela não tirava os olhos da lua, e eu, disfarçando o melhor que podia, mal desviava o olhar dela. Minha visão já se acostumara com a pouca luz, e eu via com perfeição seus braços arrepiados de frio, os mamilos eretos de seu busto bem desenhado – mesmo sem sutiã –, e seu rosto de traços marcantes e doces.
Foi quando ela reintroduziu o assunto:
- Eu gosto de ti, sério.
- É, também gosto de ti. Muito. Eu te amo.
- Nossa! Declarações à luz do luar.
- É.
Ela riu. Parecia divertida com a situação. Parecia entender. Ou não. Bebericou da latinha sem me olhar. Deu pouca importância, eu já esperava por isso. Deveria ter me calado, se é que falei alguma coisa à que ela se lembre ao fim da lata. Suspirei e bebi um gole grande e quase me afoguei; tossi rouco, quase seco, mais por susto que por outra coisa. Tive certeza de que ela sorrira, mas seria impossível ter certeza. Seria como uma vingança pela vez que eu lhe dei um caldinho; estávamos na praia, dentro do mar, com a mãe dela, quando, do nada, pulei para cima dela e empurrei-lhe a cabeça para baixo, de repente, e a fiz engolir água até pelos olhos. Eu ri e esperava que a mãe dela risse também, mas não foi assim que aconteceu. Levei o maior xingão da minha vida: a tia me explicou, o mais delicada e, ao mesmo tempo, mais rispidamente possível o quanto o que eu tinha feito era errado e ruim.
Estava frio na rua, muito, muito frio. Queria entrar logo, acabar com aquilo e ir dormir. Que se explodisse ela e todo o resto. Minha cabeça estava zonza, minhas pernas geladas e as mãos entorpecidas do gelo da lata. Havia falado demais, e ela iria rir de mim por toda a vida. Onde já se viu, eu, um reles mortal, apaixonado por ela. Ela vivia num universo muitíssimo diferente do meu: eu era um bundão; ela, uma mulher feita. Ao menos era o que eu achava, aos 12 ou 15 anos... Ou desde sempre até então.
Eu queria poder tocar seu braço, oferecer meu casaco, pegar em sua mão, lhe roubar um beijo, qualquer coisa. Tudo que fiz foi terminar a droga daquele líquido amargo, amarelo e de cheiro ruim. Ainda sentado naquela droga daquela cadeira de abrir, naquela droga daquele frio que só não me rasgava as pernas porque não tinha vento, sob aquela droga daquela lua semi-escondida pelos galhos. Olhei a porra da luz da lua caindo por seu rosto, beijando sua pele, e eu ali, só olhando.
Suspirei, pensando no que seria o futuro para nós. Me perguntei se manteríamos nosso convívio, desejei que possamos criar nossos filhos com um nível de proximidade parecido com o nosso. Me enchi de expectativas no futuro. Então me levantei, lhe roubei um beijo. Queria que fosse ao menos no rosto, mas a coragem me faltou: beijei-lhe a testa. Ela me olhou, mas a minha sombra impediu entender sua expressão. Virei-me, e sem olhá-la, fechei a cadeira e me dirigi à porta. Já estava entrando em casa, quando tive a impressão de que ela havia dito alguma coisa. Hesitei antes de me virar, e quando o fiz ela estava de costas. Talvez tivesse acabado de se virar, talvez nem tenha se mexido.
Virei-me novamente, lhe disse boa noite, e entrei na casa. O dia amanhã era incerto, depois de ter falado demais.

Similar à Uma Vida

Esse texto foi escrito no dia 19 de janeiro.

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Ontem aconteceram três coisas bem engraçadas Engraçadas, não. Intrigantes. Não ha graça, seja qual o sentido de graça empregado; nenhuma graça nisso.
Parece sina deste tempo infeliz da minha vida: tudo que eu escrevo é mal interpretado. Se eu desabafo sobre a hipocrisia do mundo, tem gente que diz que foi uma tentativa de humilhar e de expor outrem. Se eu escrevo de forma puramente ficcional, tem gente que insiste que tou falando de mim. Se eu escrevo sobre mim, tem gente que acha que tou dando lição de moral... ou que tou me fazendo de coitado.
As pessoas são livres para pensar o que quiserem sobre o que leem. Mas isso já ta virando perseguição. Sério.
De qualquer forma, nunca prometi ser uma pessoa boa. Não sou, não aprendi a ser, e nem sei se quero.
As pessoas boas são hipócritas, e eu não quero isso pra mim. As pessoas boas assediam moralmente seus semelhantes, humilham e insistem em continuar humilhando. E olha que eu não sou uma pessoa de me ofender fácil quando eu sou o tema. Dói mais quando o afetado é uma pessoa de quem eu gosto, seja amigo, conhecido ou o que for; principalmente quando a pessoa não merece.
Mas eu não sou uma pessoa boa. Não sou mesmo. Eu falo o que eu penso e que se exploda. Ninguém nunca se importou se eu estou confortável ou não com o que tem para falar de mim. Sempre fui motivo de chacota, e por mais que me esforce continuo sendo. Porque deveria me importar com sentimentos de quem não se importa com os meus?
Eu não preciso de muitos amigos. Não preciso de hipocrisia, de politica de boa vizinhança. Preciso de sinceridade. Cansei de dar a outra face, isso não serve pra nada.
Sabe, li esses tempos um texto da Tati Bernardi onde ela falava que sua personagem (não tenho certeza se aquilo era "autobiográfico" ou não), quando pequena, sentia uma imensa angustia e ansiava por quando começasse a sentir dor. É mais ou menos assim que eu me sinto. O mundo me angustia, me machuca, me fere... mas não me dói. Abre feridas, aperta o peito, comprime a vontade, pressiona a mente, enfraquece o corpo. Mas não dói.
É sempre essa eterna angústia. A eterna angústia de ser olhado, mas não visto. Ou de nunca ser transvisto, se for melhor.
Eu fui uma criança sozinha, eu fui um adolescente sozinho e eu sou um jovem adulto sozinho. Não importa como eu seja, o mundo me repele, me rechaça, me afasta de seu convívio corrompido, asqueroso. E é terrivelmente angustiante isso. Não importa o quanto se critique, se recrimine, todo mundo quer se banhar nestas águas fétidas, nadar por este rio purulento de doenças epidêmicas, crônicas e psicossomáticas que insistimos em chamar de sociedade. Engraçado, agora, pensar que insistentemente se fala em câncer social, quando na verdade a nossa sociedade integralmente é um grande tumor maligno.
De qualquer forma, eu sempre estive a parte disso tudo. Não por escolha minha, mas dos outros. Eu fui uma criança feliz, um adolescente feliz e sou um adulto feliz. Aprendi a ver a felicidade no menor dos atos humanos, na mais tenra beleza natural... aprendi a encontrar a felicidade no menor dos detalhes.
Mas nunca fui ninguém. Desde pequeno, eu vivi em uma redoma de vidro, o que me condenou a levar de choque toda a maldade do mundo em cada instante em que preciso dar a cara a tapa. Essa redoma que a minha família me pôs para me proteger, me defender do mundo, também os deixou do lado de fora. Fui criado pelo molde da submissão, da omissão, do carinho momentâneo, do afeto como moeda de troca onde toda a barganha ficava aos encargos de outrem. Eu era ali, uma criança que recebia migalhas de tudo, do mundo, numa família desestruturada, corrompida, marcada pela indiferença pela minha mãe, já que todo amor da minha avó e todo desafeto do meu avô eram focados ao filho mais velho. Era ele, a quilômetros de distancia, um fantasma que ainda agride a instituição primeira onde meu irmão cresce e para onde, de volta, destino carrega minha mãe e eu. Sim, porque, afinal, ele, meu dindo, é uma pessoa boa. O bom cristão católico, o bom filho que fez aquilo que a mãe esperava (inclusive rejeitar o próprio pai), o bom marido que é indiferente à casa sob alegação de deixa a administração do lar para a esposa, o bom profissional que começou como um gauchito estudante de Administração, viajou o mundo custeado pelo banco em que trabalhara e hoje é um paulistano bem sucedido ministrando aulas em uma universidade. É o molde perfeito de boa pessoa, que liga periodicamente para demonstrar interesse e preocupação para conosco, mas, mesmo ganhando sozinho a renda de nossa casa inteira atualmente, não é capaz nem de posar conosco quando vem à Sapucaia. Dorme todas as noites na sogra, passa praticamente todos os dias visitando os parentes da esposa, enquanto a mãe recebe migalhas de sua presença, os sobrinhos e a irmã apenas lição de moral, e os tios e primos nem sombra. Mas não se influencie por mim: meu dindo é uma pessoa boa, e eu, como minha avó faz questão de lembrar, uma pessoa ruim. É que expor falhas de caráter sempre transforma o mais santo dos homens em monstros sem coração... não é?!
Bom, eu fui criado assim, à sombra do tio perfeito, sem pai, e com meu avô sendo recriminado como monstro. Certo, ele tem defeitos - todos os defeitos, segundo alguns -, mas foi o pai que eu tive, o homem que tentou me ensinar o que sabia, que sempre me deu carinho, atenção e amor. O problema é que a imagem dele foi por tanto tempo recriminada pela minha avó, que hoje eu simplesmente não consigo me aproximar mais. Cresceu uma barreira impenetrável entre nós – construída inclusive pela boa pessoa do meu tio –, que hoje, simplesmente, eu e meu avô somos como estranhos um ao outro. Sobram-me carinho e respeito pelo velho, mas essa maldita redoma em que me colocaram já não comporta mais a passagem do meu avô para dentro dela.
Toda minha família, talvez a exceção do meu avô, sempre esperou de mim aquilo que eles querem, não o que eu quero. O que eu quero não serve pra mim. Eu estou errado, eu sou muito imaturo ainda pra entender, tudo que eu faço é errado e/ou mal feito.
Me deram um curso de teclado, uma vez, mas eu era obrigado a treinar em casa com um instrumento duas oitavas menor do que os teclados profissional. O som saía horrível, prejudicava meu desenvolvimento; meu professor insistia na compra de um teclado do tamanho certo – chegando a oferecer um dos dele a um preço muito menor que o de mercado, mesmo para um instrumento usado como aquele. Quando eu parei de tentar ensaiar com aquilo, e fiquei restrito às aulas, minha família me tirou do curso. Até hoje elas dizem que fui eu que desisti, que eu que não quis mais, que elas não sabem porque.
Na escola, eu era aquela criança que não era aceita por nenhum grupo. Ou porque eu era quieto demais, ou porque preferia a casa do que a rua, porque eu tinha as melhores roupas da turma na escola publica, ou as piores na particular, porque eu tirava as melhores notas, ou porque eu era vaidoso, porque eu era gordinho, ou porque eu não ficava sozinho em casa a tarde toda, porque minha mãe era professora na escola, ou porque ela comparecia em todas as reuniões, porque eu
escrevia, porque eu cantava no coral, porque eu fazia teatro, porque eu desenhava, ou porque eu era gago. As crianças sabem ser as criaturas mais cruéis da face da Terra... mas, no fim, elas crescem,
amadurecem, e viram pessoas boas. Minha classe era sempre a escolhida para ser esbarrada e os meus materiais eram sempre os que se espalhavam pelo chão. Eu cheguei a apanhar na escola. Por mais que eu gostasse de estudar, por vezes eu tive medo de voltar pra lá; mas os professores nunca entendiam, afinal, a turma era sempre boa e tranquila, o Erik é que destoava por se autoexcluir do grupo.
Eu poderia mentir, agora, dizendo que eu era o único que sofria bullying, ou que eu sempre apanhei, ou que roubavam meu lanche ou meu dinheiro para. Ou fazer drama, elencando que minha sugestão de nome nunca foi escolhida para a equipe da gincana; que os colegas me proibiam de assumir uma prova na gincana, mas me cobravam e me xingavam porque ninguém mais tinha feito, então eu deveria ter feito mesmo eles mandando eu não me meter; ou que minhas ideias, mesmo sendo as melhores, nunca foram acatadas dentro de um trabalho em grupo. Mas não é esse o meu intuito. Não quero provocar pena: somente pessoas boas são dignas de pena. Também não vou dizer que não minto. Mentir é a maneira mais fácil de se obter a atenção das pessoas. Principalmente quando se mente muito e mal: as pessoas vão sempre prestar atenção em cada vírgula sua para descobrir se tu estas mentindo ou não, e se podem confiar ou usar aquilo contra ti.
Quem não tem cão, caça com gato... ou quem não tem atenção pelas qualidades, consegue-a pelos defeitos. Eu desenho perversões mentais, escrevo coisas feias, meu cabelo é horrível e eu não sei me vestir.
Sempre quiseram que eu amadurecesse, mas nunca pelo que e para o que eu queria. Aos doze anos, eu era errado por não ter ficado ainda; aos treze, por estar ficando; aos quatorze por estar namorando; aos quinze por ter brigado; aos dezesseis por ter perdido a virgindade; aos dezessete por começar a trabalhar; aos dezoito por ter casado. Eu era o pior filho do mundo por querer viver a minha vida, por querer trabalhar, por querer cursar filosofia ou teologia, por sair de casa para ir a escola de manhã e a tarde à um parque ao lado da escola onde minha mãe trabalha, por passar grande parte do meu tempo dentro do quarto, lendo, escrevendo, desenhando ou no computador, por jogar bola na frente de casa, por querer fazer magistério, por querer ajudar quando meus amigos ou a minha mãe se viam subjugados pelo mundo.
Um exemplo? Eu tinha quinze anos quando uma amiga minha engravidou. Ela era madura o suficiente para arcar com as consequências; a gravidez foi acidental de um namoro firme, único e de conhecimento geral. Ainda assim eu fiquei preocupado. Quanto a isso, minha avó olhou pra mim e disse: “é teu o filho?! Então deixa que ela se estrepe. Quis dar, agora que aguente.” Minha amiga era uma pessoa ruim, e eu, como pessoa boa que esperavam que eu fosse, deveria ser indiferente a peça que a vida lhe pregara e as dificuldades pelas quais minha amiga passaria. Ela era uma pessoa ruim, e foi vítima de ciúmes infundado, sofrendo julgamento e preconceito, sendo intitulada "tiatina"; Afinal, como pessoa boa que esperavam que eu fosse, por estar namorando/casado, eu não deveria ter amigas, muito menos uma que tinha engravidado na adolescência...
Minha ideia de mundo foi sendo dizimada ao longo do tempo em que a minha visão de mundo se construiu: Não temos amigos. Amigos são pessoas com quem conversamos, mas para quem não expomos nossas vidas. Primos não são família. Primos dos pais não são nada. Tios são os irmãos dos pais, e merecem respeito, mas não são família. Tios não são os irmãos dos avós, nem outros adultos que fizeram parte ativa da tua criação. Família não é uma organização, um núcleo só, uma só finança e decisões coletivas. Eu tenho um carinho imenso pela minha família de Charqueadas... o
problema é que eles não são minha família de sangue, então não são nada meus.
Não sou de esquerda, nem de direita, então eu sou alienado. Eu não trabalho em chão de firma, não fiz nenhum técnico, não me importo com a carteira assinada se estiver trabalhando/estagiando no que gosto, então eu sou imaturo, irresponsável, fracassado. Eu tenho imenso respeito e gratidão pelas pessoas que querem meu crescimento, meu futuro promissor. Mas eu sou uma pessoa ruim, e essa angústia não me abandona. Eu sou tão ruim, que quanto mais eu grito por socorro, mais eu imploro por ajuda, mais eu corro e me esforço... ninguém vê. Eu queria ser desenhista... Queria ser musico... Queria ser ator... Queria ser escritor... Queria minha vida dedicada às artes, dar vazão à minha mente incontrolável e ao peso da minha alma. Mas pessoas boas, verdadeiramente boas como meu dindo, trabalham em coisas que realmente dão dinheiro, falam três linguás no minimo, leem apenas literatura técnica, e dão vazão as suas angustias orando, comprando, viajando...
Pessoas ruins se preocupam em ser, e não em parecer ser: ser quem são, e não o que os outros querem que elas sejam. Ou, talvez, eu seja tão ruim que, sendo assim, eu sou pior que as pessoas ruins.
Eu sou uma pessoa sincera e verdadeira, mas aprendi a ser desonesto. Teve um tempo que a minha vida era um livro aberto. Saber de mim era fácil, porque eu contava tudo. Não haviam segredos, e isso deu liberdade a que cada suspiro meu fosse usado contra mim. Eu era o viadinho, o vagabundo, o retardado. Era motivo de chacota! Aprendi a mentir, esconder, dissimular. A ver a maldade em tudo, a desconfiar de todos. Nunca usei ninguém, nunca fingi. Mas saber disso foi bom, aumenta minha angústia e minha decepção para com as pessoas.
No fim, eu cresci imerso em uma depressão sem fim. Tenho consciência de que não presto, de que sou uma pessoa ruim. Logo, mereço e busco as devidas punições, sendo meu maior crime essa existência errônea, errante. Magoar as pessoas me provoca uma horrível angústia que parece consumir meu coração – se é que pessoas ruins tem um coração –, mas sou obrigado a magoá-las: eu sofro mais que elas, sendo a única forma de punição que posso atingir, já que não tenho a coragem de um suicida.
Ver alguém que gosto sofrendo por qualquer coisa me angustia por minha impotência em melhorar tudo. Mas quando ela sofre por mim, a angústia me dilacera, me rasga, me impele a mudar...
Só que eu não consigo. Por mais que eu procure, não consigo emprego de verdade. Por mais que me esforce, não consigo desistir da licenciatura e trocar a Historia pelo Direito, pela Administração ou por uma engenharia. Por mais que eu sofra, não consigo deixar de querer escrever, desenhar, pintar, atuar, fotografar. Por mais que me fira ser uma pessoa ruim, eu não consigo mudar, não consigo ser uma pessoa boa, um homem respeitável de cabelos curtos e barba feita todo o dia, assistindo futebol, me interessando por carros, politica e economia... e não por desenhos de jiboias com elefantes dentro. Então, o mundo me agride, por minha incapacidade de ser alguém, de ser uma pessoa boa.
O problema da agressão é que, assim como o agressor pode ter muitas faces, ela pode ter muitas formas. Talvez a única semelhança nesta pluralidade seja que, independente do que mais provoque, sempre causa humilhação. Em mim, cada humilhação dessas alimenta esta angústia interminável. Assim, ao contrario do ditado que diz que o que não mata, fortalece, eu fico cada vez mais vulnerável. Hoje, vivo com a certeza do não-reconhecimento, o medo da solidão, e a ferida aberta da humilhação que ninguém deixa cicatrizar. Eu lembro de que não pude me defender quando apanhei na escola, que não fiz nada quando fui assaltado... que hesitei quando, na frente da minha então esposa, minha avó gritou na cozinha, o dedo apontado pro meu rosto: "tu tem o dedo podre". Mas ainda assim não doí. Faz-me o estômago em raivosa gastrite, me deprime, me faz desacreditar em mim... mas não dói.
Eu sei bem aquele outro ditado sobre dar a outra face. Jesus fez isso. Dalai Lama também. Ambos foram mortos por seus inimigos. Jesus nunca conseguiu unificar os judeus, ao contrario, separou-os ainda mais; Dalai Lama, com os indianos, sim. Ambos líderes religiosos, Jesus se negou a combater os romanos; Dalai Lama entrou em combate pacifista. Mas eu não sou religioso, não sei revidar de maneira nenhuma. Se dou total a outra face, excrucio. Se combato pacificamente, não há qualquer apoio de ninguém. Se revido, não agrido, ofendo. E por mais que eu queira agredir, que tente, que me esforce, no fim, só ofendo.
A diferença crucial é que ofensa magoa, machuca, choca, mas não humilha. Toda a vez que eu sou humilhado, que me abrem uma ferida nova, que aumenta minha angústia, tudo que consigo fazer é causar uma marca efêmera, e eles nunca sentem, não sabem, o que sinto. Neles, lágrimas passageiras dos olhos pra fora. Em mim, uma tormenta interminável pela mente e pela alma. Eles logo voltam às suas vidas de pessoas boas. Eu, como ruim, existo com os pés na lama das minhas fraquezas, encharcado pelas gotas dos meus erros, imerso na escuridão da minha angústia.
Eu vivo nesta angústia inacabável, sabendo que sou uma pessoa ruim, mas me esforçando para ser boa. Afinal, não sou uma pessoa boa de fato, mas posso parecer ser. Por tentar me tornar uma pessoa boa, comumente sou confundido com uma, mas sou uma pessoa ruim. E como pessoa ruim, machuco as pessoas que acham que eu sou uma pessoa boa. Eu adoro limpar a casa, mas sempre sai mal feito, sempre alguém acha um defeito. Eu adoro cozinhar, mas nunca consigo fazer o processo como as pessoas querem/esperam que se desenrole. Eu queria ser um bom marido, mas não tenho emprego fixo, então minha esposa precisava trabalhar para ajudar na casa, assim como tinha meu total apoio para estudar, o que a impedia de lutar por seus direitos. A minha angústia me fez ofendê-la, mas ela permaneceu ao meu lado; isso me destruía dia após dia, aumentava a minha angústia vê-la esperar e se esforçar para que eu me tornasse uma pessoa boa. Eu queria ser pai, mas não consigo cuidar nem de um cachorro ou gato... Eu queria ser adulto, e largar os animes e mangás, os quadrinhos e animações, os filmes de ficção e fantasia, os games e o RPG. Mas eu sou um lixo. Não me encaixo em lugar nenhum, não tenho nada em comum com ninguém, não tenho amigos, não tenho família.
As pessoas me rodeiam, esperando que eu finalmente deixe de ser tão ruim, para só então integrarem minha vida. Atualmente, tudo que eu quero é afastá-las Nada de bom vem de mim, sou autodestrutivo e incoerente. Fui criado para ser uma pessoa boa, mas não consigo ser. Não quero meu irmão seguindo meus passos. O pai dele sempre me avisou quanto a isso: que eu seria um péssimo exemplo para meu irmão, que eu não seria ninguém na vida. A exceção da vez que um colega de serviço que enfiou o dedo na minha cara e disse que eu era um merda, o pai do meu irmão foi a única pessoa sincera comigo: eu não sou alguém que preste. O problema é que me angustia - quase, mas ainda assim não dói – ver meu irmão rindo quando a minha avó se coloca dominadora e humilhadora em cima de alguém Eu sei que essa é a criação certa, que assim meu irmão vai ser uma pessoa boa, de caráter, de futuro; mas eu não consigo. E eu sempre acabo fazendo alguma coisa, as vezes drástica Mas eu estou errado, eu sei. A minha avó sabe o que faz, e não vai errar com meu irmão como errou comigo. Afinal, ela é uma pessoa boa; as ex-cunhadas que não a visitam é que são invejosas, por que minha avó está reformando a casa constantemente, mesmo que dessa forma não tenha condições financeiras para operar os olhos. Ela é uma pessoa boa, afinal: em seu aniversário, logo depois que todo mundo havia se servido pela primeira vez, ela disse que sobraria tudo que tinha na mesa para o almoço do dia seguinte. Só as pessoas ruins, como eu, entenderam aquilo como um "tem que sobrar para amanhã".
Eu é que sou uma pessoa ruim, por pensar sozinho, por querer arriscar mesmo podendo quebrar a cara. Eu sou uma pessoa ruim por não querer ver meu irmão crescendo como a pessoa boa: meu irmão que é sarcástico o tempo todo com todo mundo, que conhece o mundo pela televisão e pelos seriados norte-americanos, que desde os sete anos de idade prefere filmes de ação a animações, que ignora quando alguém chato – geralmente mais velho – vem conversar com ele.
Eu fui criado pra ser uma pessoa boa: dentro de uma redoma de vidro onde nada penetra, onde eu viveria egoisticamente em beneficio meu e realizando os sonhos e desejos da minha avó, longe do exemplo da minha mãe que cometeu o erro de tentar viver pela própria cabeça e só conseguiu quebrar a cara e destruir a própria vida. Mas eu nasci com uma índole ruim, propenso a chafurdar na lama da nossa sociedade em busca de comida limpa e não lavagem. Eu fui mimado demais, e acabei achando que o mundo é dos mais justos e não dos mais espertos. Ledo engano.
Agora eu sou uma pessoa angustiada, que se odeia e tenta se punir a todo o custo por seu erro de não ser quem se espera. Não é sarcasmo, não é ironia: eu sou realmente um merda, um mau exemplo, um infeliz solitário, um depressivo ridículo que fica quase seis horas escrevendo um texto que só servirá para que ele se odeie mais por ser quem é. Não e uma lição de moral, é um desabafo a espera da benção da dor.