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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

MK

Este conto é uma continuação do Lábios da Morte. A ideia era escrever crônicas sobre Os 7, mas não sei se sai...

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Ela atravessou a rua olhando para os lados. Não que aquela hora da noite, com a saída da escola, ela estivesse preocupada com automóveis. Seu olhar vasculhava as sombras, procurando ver algo que seu coração aprendera a esperar. Ele viera acompanhá-la todas as noites, desde o começo do semestre. Nem sempre na mesma hora, nem sempre no mesmo lugar, mas invariavelmente todas as noites.
O coração de Catherine ficava apertado com a proximidade do fim da aula, todos os dias: tinha certeza de que ele não viria, mesmo ele tendo dado a sua palavra e tendo sempre honrado-a. A cada dia, com a expectativa aumentando conforme as horas passavam, ela tinha certeza de que fizera alguma burrada na ultima noite, de que falara alguma besteira, de que ele perdera o interesse nela. O que era pior é que ela nem sabia que tipo de interesse ele tinha por ela. Eles conversavam o caminho todo, sobre tudo... e sobre nada.
Kattie morava a pouco mais de três quilômetros da escola. Era longe o suficiente para que ela pegasse uma lotação, mas era perto o suficiente para que a empresa de transporte público achasse desnecessário um micro-ônibus naquele trecho. Era longe o suficiente para que uma jovem sozinha fosse assaltada – e coisa pior –, mas era perto o suficiente para que eles tivessem que, aparentemente, cortar suas conversas no meio.
Ele não havia aparecido ainda, quando ela cruzou a rua, ladeou meia quadra e virou a esquina. Seu coração pulsava nas têmporas e ela repetia mentalmente que ele não viria. Estava começando a ficar com medo a) por ele, pois poderia ter acontecido alguma coisa grave desde que se viram pela ultima vez; e b) por ela, pois poderia acontecer alguma coisa grave antes que ela conseguisse chegar à segurança de seu lar. Logo à frente, ela precisou atravessar outra rua, olhando para todos os lados, literalmente.
Ela chegou à outra esquina já mentalmente – mas não emocionalmente – conformada. Puxou a bolsa mais contra o próprio corpo, submergiu o que pode nas sobras e acelerou a caminhada. Passos se aproximaram e ela tentou baixar a cabeça, na tentativa instintiva de passar despercebida. Tentou. Alguém segurou firmemente seu queixo e ergueu seu rosto para cima, enquanto parava à sua frente. Seus olhos se enxeram de lágrimas de pavor antes que ela visse quem lhe abordava.
- Tu me assustou – ela disse, com um arrepio. Eles nunca haviam se tocado, não pele com pele, e isso a assustou, a frieza da pele.
- Desculpe – o tom dele era doce, mas não escondia certa frieza – como a de sua pele – que ela acreditava ser apenas impressão dela.
Catherine o perdoou no momento em que o reconheceu, ele não precisava se desculpar.
Eles percorreram o caminho de sempre, conversando as amenidades de sempre. Ela não lembrava direito de como se conheceram, nem se importava muito. Tecnicamente, ele sempre esteve ali para ela, sempre a acompanhou naquelas ruas escuras, sempre a levou para casa, desde o começo do semestre... ou antes? Ela tinha mesmo certeza de que ela o conheceu apenas este ano? Ela podia afirmar, com certeza, que ele não a levava pela mão, da escola até em casa, desde pequena? Também não importava. Nenhum pouco.
À uma quadra de casa, Kattie parou. Eles nunca haviam mudado o trajeto, mas ela também nunca vira o rosto dele direito: a pouca luz dos postes do caminho sempre omitiam, de alguma forma, a face dele. Pouco antes, quando se encontraram naquele dia, eles haviam se tocado pela primeira vez... talvez fosse aquele o dia de muitas primeiras vezes para eles.
Ela atravessou a rua em direção à uma pequena praça. Ele não a seguiu, mas Catherine virou-se e lhe sorriu, convidando-o. Ela já estava sentada em um balanço quando ele “tomou coragem” e a seguiu. Os três postes iluminavam com uma luz forte e branca o centro da praça, transformando as ruas à volta em sombras que aqueles postes não conseguiam dissipar.
A luz banhou seus pés e subiu por suas pernas até lhe revelar por completo... ou quase. Ele vestia-se todo de preto; usava allstars, jeans desbotados e uma camiseta larga e ilustrada com o busto de Darth Vader. Mas quando parou à sua frente, seu rosto estava contra a luz – proposital (não que ela soubesse) e levemente (não que ela percebesse) abaixado – e imerso na sombra. A única coisa exposta era seu sorriso, bonito e malvado... não de safadeza, mas de maldade. E ela sentiu um calafrio com aquela expressão.
- Malkan... – mas ele a interrompeu: sentando-se no balanço ao seu lado, levou o indicador aos lábios dela.
Ele curvou seu corpo, aproximando o rosto – em fim completamente iluminado, e que por si só a fez perder o compasso da respiração – do dela. O olhar de Kattie estremeceu, mas ela permaneceu quieta, esperando. Malkan se aproximou mais, seus lábios a pouca distância dos dela. Ele se aproximou mais – o que a fez prender o ar – e desviou o rosto, mergulhando-o contra seu pescoço. Ela não teve tempo de perder o fôlego.
A dor rápida e marcante, daquelas que permanece sob a forma de uma coceira ou algo assim pelos dias próximos, foi logo substituída por uma sensação que Catherine nunca havia experimentado. Era como se não houvesse nada além deles... da boca dele em seu pescoço, dos braços dele em sua cintura e nunca. Ela percebeu que ele a havia tirado do balanço e que estavam em pé, mas ela se sentia flutuar.
Kattie gemeu baixinho com o prazer que lhe arremeteu a estranha sensação proporcionada por seu sangue saindo de seu pescoço, um filete quente e gostoso escorrendo lento por ele. Seu corpo estremecia e ela se sentia em paz...
Foi quando as visões começaram. Ela viu, pelos olhos dele, os corpos das meninas com as quais Malkan se banqueteara. Todas elas aparentemente da mesma idade que ela, com cabelos aparentemente da mesma cor e, apesar da luz... Oh!, droga, todas tão parecidas com ela!
Malkan a soltou, empurrando-a pelos ombros, dando vários passos para trás, tropeçando e perdendo o equilíbrio. Entorpecida, Kattie sentiu a cabeça girar e teve de apoiar-se na estrutura do brinquedo para não cair. Ele a olhava com uma expressão de pavor, e ela sorriu amarga e mentalmente: aquele deveria ser um joguinho dele, uma forma de dar esperanças à vítima de que talvez ela, em vista das outras, sobreviveria; talvez o sangue fosse mais gostoso quando temperado com uma desilusão assim. No mesmo instante em que pensou nisso, ela soube que não, que a reação dele era outra coisa... a reação dele era...
O vampiro apontava um dedo trêmulo, sua boca suja com uma única listra em um canto balbuciando uma palavra aleatória (?). Você. Silenciosamente, ele a apontava e deixava claro que era ela... que...
Então Catherine se lembrou. Não como a gente lembra de uma brincadeira da infância, do primeiro beijo, ou do dia de ontem, por mais recente que pareça em nossa memória. Lembrou como nos lembramos quem somos, nossos nomes, onde moramos, à que núcleo familiar pertencemos e que família formamos, no exato momento em que acordamos. Ela se reconheceu. Mas não como nós nos reconhecemos... talvez como alguém com amnésia é capaz de reconhecer as próprias mãos ou o próprio rosto. Como se o corpo (ou a alma) tivesse uma memória a parte – e melhor – de a da mente.
Ela se viu de mãos dadas com ele, andando pelas ruas, voltando... voltando de algum lugar. Eles sorriam, conversavam. Ele a chamava por outro nome, mas que era o seu nome naquele momento, e lhe acariciava o rosto. Ela também se lembrava de vê-lo do chão, pela ultima vez antes de nunca mais enxergar, e de como ele parecia apavorado olhando dela para algo que fazia sombra à sua frente.
Kattie olhou o vampiro à sua frente com aquela mesma expressão de pavor. Chamou-o pelo nome, e as pernas de Malkan fraquejaram, deixando-o sentado na areia. Catherine se aproximou, repetindo aquele outro nome dele. Ela abaixou-se, acarinhou seu rosto e lhe disse que estava tudo bem... que ele sabia o que fazer, e que ficaria tudo bem...

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