A menina corria pelo jardim. Sorria feliz, pelo mundo que era só seu. As onze-horas eram suas únicas amigas, as únicas que lhe ouviam, que lhe dirigiam palavras sinceras e amigas. Ali, ela era ela mesma, podia brincar de que tinha asas coloridas de borboletas, cabelo rosa e antenas. Era apenas ali, junto às onze-horas, que ela se sentia feliz.
Seu mundo cheio de cor, brilho e luz, entretanto, existia apenas uma hora por dia. Enquanto as outras crianças ganhavam visitas, esperando serem adotadas, a menina era escondida nos fundos. Ela tinha mãe, a grande rainha daquele castelo feio e escuro que chamavam de "ortanato".
Pequena e magrinha de mostrar as costelas, a menina não devia ter mais de 3 anos. Não que ela tivesse qualquer noção disso ou que alguém soubesse, ninguém estava contando mesmo. Mas já era capaz de ajudar limpando os sanitários, passando cera, ou qualquer outra coisa que sua mãe mandasse. E aí dela se não fizesse tudo rápido; apanhava e ficava sem janta. O problema é que as onze-horas passavam o dia lhe chamando, e sempre que passava por uma janela, a menina não conseguia não olhar, e às vezes ela não conseguia parar de olhar... ou não parar de olhar antes de sua mãe a encontrar.
Mas a menina não se importava. As onze-horas lhe contavam sobre o mundo além daqueles muros, e lhe acalentavam a dor e a fome. Mesmo que os roxos ainda estavam ali, marcando sua pele áspera, o dolorido ao toque desaparecia. As borboletas flutuavam em volta. Os besouros, formigas e outros insetos também. Todos vinham para conversar, lhe contar histórias, e, mesmo que com pressa, sempre lhe cumprimentavam.
Era assim que ela estava, agora: sentada com as pernas cruzadas, rindo e conversando. Nem viu quando alguém se aproximou. As flores e os bichinhos viram e gritaram, mas era tarde demais. Uma mão forte agarrou o braço da menina e a levantou. Era um homem feio, barbudo, magro e com olhos maus. Ela podia ver uma coisa preta, enorme, atrás dele; uma coisa que a assustava.
"Gostosinha, tu, heim?!", disse ele, olhando-a de cima a baixo. Tapou sua boca, perguntando se ela "vai gritar não, né?". Derrubando-a no chão, beijou-lhe o pescoço, roçando a barba comprida. Sempre com uma das mãos em sua boca, colocando peso sobre ela, ele lhe rasgou a blusa e esfregou o rosto por seu peito e barriga.
Assustada, seus gritos abafados foram ouvidos apenas por seus amiguinhos; somente eles viram suas lágrimas. As abelhas vieram voando rápido, os ferrões erguidos, e ela gritou para que elas parassem, que iriam morrer se atacassem o homem, e elas pararam no mesmo instante, zumbindo com raiva, mas dando ouvidos ao pedido dela.
O cheiro das onze-horas, então, ficou cada vez maior. As ondas de um sono calmo começaram a lhe banhar, e ela sentiu o peso do homem aumentar até ele cair adormecido sobre ela. Ela também estava caindo no abismo da inconsciência quando ouviu as flores lhe mandarem comer.
Seu olhar se abriu em uma caverna escura e úmida. Ela estava em uma sala ampla e alta, sangue pingava do teto e se acumulava em poças no chão. Em um canto estava um vulto encolhido, chorando; portas tomavam todas as paredes, cada uma com uma inscrição com letras e números, mas era até aí que a menina conseguia interpretar. No centro, sozinho, um copo-de-leite crescia solitário.
Já não havia medo em seu coração, mas a menina ficou surpresa com a fome que lhe assolava. Sentiu pena da criatura que choramingava nas sombras, longe da luz clara que a flor branca produzia. Mas a fome era mais forte, e ela avançou para uma das portas, procurando comida.
Na primeira, encontrou um travesseirinho, uma mamadeira e um ursinho de pelúcia. Comeu-os, sentindo o gosto de chocolate tomar conta de sua boca. Haviam brinquedos de bebês, roupinhas e um berço, que ela comeu tudo. A criaturinha encolhida no canto gritou de dor, mas a menina não conseguiu se importar. Na segunda porta haviam carrinhos, skate, bicicleta e uma cama em forma de foguete espacial, e tudo tinha gosto de bala de goma. A terceira, a quarta, a sétima, a décima porta. Ela entrou em todas, e comeu tudo. A criatura parecia encolher a cada porta, e gritava mais alto a cada dentada que a menina dava em algo, e logo ela começou a sentir prazer em ouvi-la chorar. Saboreou tudo, inclusive as lamúrias e os berros, mas sua fome não morria. Nem ao menos minimizava.
Lambuzada e grudenta, sentada dentro da ultima sala, ela olhou para o copo-de-leite. Sua mãe tinha lhe dito para nunca tocar nessas flores, e sua mãe tinha umas quantas dessas no jardim da frente. Mas sua mãe não estava ali, e ela estava com fome. A coisinha no escuro gritava muito alto agora, e a menina não conseguia pensar. Só que, também, ela não queria nem precisava pensar. Simplesmente queria e precisava se levantar, caminhar até a flor e come-la. E assim a menina fez.
Quando engoliu o ultimo pedacinho verde do caule, ouviu um ultimo grito de dor e o silêncio absoluto. A caverna à sua volta oscilou, e começou a desaparecer. Novos sons ecoaram dentro de sua cabecinha, e uma luz avermelhada atravessou suas pálpebras fechadas.
Ela acordou no gramado. Pessoas corriam em sua direção, e o homem mau ainda estava em cima dela. Sua mãe se aproximou gritando e chutando o corpo inerte do homem. Abraçou a menina como nunca havia abraçado, repetindo e implorando que nada tivesse acontecido com sua pequena.
Uma outra mulher chegou perto do homem, lhe tocou o pescoço e o pulso. A menina não sabia o que aquela senhora de branco estava fazendo, mas disse em voz alta que "ele está morto", e a mulher concordou com um aceno de cabeça. A boca de sua mãe mexeu contra seu couro cabeludo, e ela ouviu-a dizer que era "graças a Deus".
"Foi graças às onze-horas, mãe", a menina respondeu.
Meu Deus Erik, da onde você tira essas ideias? O.o
ResponderExcluirPesada essa historia não acha? Mas bem bonita, bem formulada, bem... sei lá, critica! *u*
Amei, de verdade, sabe que prefiro as historias aos poemas né!? então... acho que ficou PHoda!! xD
beijoos! até a próxima!! ^^'
:**
Medo...
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