Roland já não dormia tanto; aos poucos seu sono se
tornara mais controlado. Tinha passado a acordar quatro ou cinco
vezes por dia: ao amanhecer, pelo começo da tarde, ao anoitecer e
pelo meio da noite. Certa feita, ele foi obrigado a perguntar porque
já não dormia tanto.
- Parei
de te dar caldo de dorme-dorme. Já não necessitas mais, não
sentes mais tantas dores.
- E
como sabes?
- Não
gritas mais durante o sono – disse a bruja,
sorrindo.
- Ficaste me cuidando enquanto dormia? - Roland tentou um
tom de desafio descontraído. Aos seus ouvidos treinados para
perceber a própria voz, pareceu que tentava seduzí-la.
Ela apontou para o restante da pequena casa. Era uma
peça, apenas. A cama em que estava deitado ficava de frente à uma
mesa de dois lugares. À sua direita havia um fogão à lenha, aos
pés dele, no chão, um colchão de palha. Não havia qualquer outra
coisa ali.
- Deve estar sendo ótimo dormir ali... - disse, irônico.
- É ali que durmo. Esta cama eu fiz pra ti.
Roland não respondeu, preferiu mudar de assunto...
bruscamente.
- Porque me cuidas?
- El
hombre en negro
me disse que esta escolha deveria ser tua, não minha.
- Que escolha?
Ela se aproximou,
chegou seu rosto bem próximo ao do dele. Entre salvá-la ou
assassiná-la: essa era a escolha; soube sem que ela respondesse.
Finalmente ele era capaz de ver seu rosto, e não havia qualquer
traço de velhice como ele lembrava. A bruja
era jovem e bonita, com um sorriso sincero e um olhar...
O cabelo dela caía
sobre metade do rosto, mas ainda assim Roland notou algo estranho no
olho encoberto. Tentou afastá-lo com as mãos, para ver a face dela
por inteira, mas ela se afastou como que assustada. Instintivamente,
algo passou pela cabeça do gaucho.
- Achei que bruxas só morressem quando queimadas até
virarem cinzas; que nada mais as ferissem.
- Não é um ferimento...
- E o que é? Parece cicatriz de feitiçaria
Ela se calou. Era a resposta de que Roland precisava.
- Me conte, por favor.
A bruja
abriu a boca, hesitou, e fechou novamente. Fez isso duas ou três
vezes, parecendo procurar as palavras certas.
- Não irá me influenciar na minha decisão – e foi o
que ela precisava ouvir.
- É um pacto de sangue.
Roland sabia o que
aquilo significava.
- O velho... - perguntou, reflexivo.
Em silêncio, ela balançou a cabeça, em afirmativo.
*
Roland entrou no pequeno vilarejo com os passos mais
firmes que sua condição ainda debilitada lhe permitia. Toda a
animalada procurou sair para longe; ficaram em seus lugares apenas o
pequeno rato e o jovem corujito.
- Qué pasa! - gritou o corujo
- Buenas!
- respondeu Roland, ignorando a ameaça na voz do outro. Ergueu a
mão em cumprimento.
- Passa
daqui, que não é mais bem vindo. Te emancebou com a bruja.
- Quero
ter com o velho pai,
- Não!
Traíste a confiança que foi depositada em ti – respondeu o
corujo, parando na frente do pistoleiro.
- Abre!
- Não...
- havia satisfação e desafio naquele tom de voz.
Roland não tinha por
índole repetir duas vezes quando era desafiado, muito menos abrir
discussão com piazote que mal havia saído das fraldas. Puxou de seu
facão, o com a lâmina azulada, e deu de estouro do lado da cabeça
do rapazote. O impacto fez ferver o rosto do metamorfo, que cambaleou
para trás e caiu atordoado ao solo.
- O que tu fez! -
gritou o rato, se aproximando. A resposta de Roland foi desviar de
ambos e seguir seu caminho.
O rosto do corujo ainda
fervia. Aquela marca nunca sairia. O pistoleiro sabia disso, e fez
esperando que por toda a vida o corujito lembrasse daquele dia.
Entretanto, se o corujo aprendeu, os outros ainda não. Se haviam
evitado a presença de Roland, agora se reuniam à sua frente.
Defenderiam o irmão: o pistoleiro apreciou a união, mas riu-se por
dentro da ingenuidade.
Um a um, eles
investiram. Um a um, Roland os derrubou com estouros de facão. Mas
foi mais leve com estes, agora. Atacavam por uma boa causa. O
pistoleiro procurou evitar o rosto e outros lugares mais visíveis,
focando sempre que possível às costas. Agora o barulho de coisa
fervendo preenchia toda a clareira. Todos os metamorfos estavam
caídos e marcados.
Mas fora esforço
demais: as costas do pistoleiro começaram a doer, e suas pernas à
falhar. Mesmo assim, ele continuaria até a casa do velho. Morreria
lá dentro, se fosse estivesse fadado à falhar, mas não voltaria
atrás.
O velho certamente
ouvira a confusão, pois saíra de casa armado de um grande facão de
osso. Vendo o pistoleiro caminhando com dificuldade em sua direção,
percorreu o restante do percurso falando:
- Pelo
que vejo – e olhou para trás de Roland – vancês muy que
confabularam. Tanto que ela te levou pra seu lado. Me pregunto se tu
foste um tongo que te entrega por palavras, ou se ela deixou que tu
a encobrisse – sua voz era baixa e ríspida.
- Cala-te,
velho imundo! Que fizeste à tua própria filha? - o pistoleiro manteve o
mesmo tom do velho.
- Tonteria!
- Tonteria?
Então é neta! Por pior ainda!
- Cala-te,
que de nada sabes. Solo quiero lo qué es miyo!
Ela tem seus poderes por minha causa. Nada mais digno que me
devolvê-los!
- Um
pacto de sangue, seu verme imundo! Com uma menininha!
- Verme?
O farrapo se apaixonou por uma chinoca de beira de estrada e quer me
dar lição de moral!
Roland investiu contra
o velho, a faca em punho. O velho desviou uma lâmina com a outra,
com a mesma facilidade que um jovem faria.
- Vá-te,
hombre, e te deixo
viver. Já viste tudo que queria!
Foi quando o pistoleiro
entendeu o tom baixo: nenhuma daquelas crianças sabia sobre aquilo.
Olhou para trás, esperando que alguém acompanhasse aquilo, mas
todos tentavam se ajudar. Péssimo momento para se preocupar em
revelar à aldeia um de seus mais bem guardados segredos.
O velho desferiu um
golpe com a sola de seu pé esquerdo, esticando com grande força e
velocidade sua perna para frente. Rolando caiu no chão e rolou sobre
si antes de bater com força a nuca na terra batida. Foi impacto
suficiente para deixá-lo um tanto atordoado. O preto velho se
aproximou e chutou-o duas vezes na lateral de seu corpo, fazendo-o
girar.
- Vejam, meus filhos! A
morte do traidor! Esperei dele a vitória contra a bruja
que tanto nos odeia sem motivos, mas fui apunhalado pelas costas! Ele
veio para cá buscando nos destruir, mas não terá sucesso em seu
intento!
Péssimo momento para
discursos. Da única vez que olhou para o grupo de metamorfo, mesmo
sem levantar a cabeça, o pistoleiro agiu. Cravou seu facão azulado
e afundou-o até o cabo na coxa do velho. Não houve qualquer reação,
e Roland afrouxou as mãos. Com aquela mesma perna, o velho lhe
chutou, fazendo o corpo do homem levantar do chão.
- A faca! Vejam! -
gritou o ratinho. - É a mesma que queimou nossa pele, mas nada faz
contra o grande pai.
O pistoleiro riu,
cuspindo sangue. O velho lhe chutou mais duas vezes.
- Seu
merda! - o velho sussurrou.
- A
bruja os ataca porque
ele suga o poder dela. - disse Roland, o mais alto que pode.
- Não
acreditem! Ele tenta nos cofundir!
- Tu
sabias que ela já perdeu um olho nesse seu joguinho?
- Cala-te!
- Ela
não quer o mal desta aldeia! Quer apenas ser liberta da dor causada
por est... - e foi interrompido com mais um chute.
O que o velho não
contava era que Roland havia agarrado a faca presa em sua carne, e a
segurava com toda a força que lhe restava. Ao chutar o corpo do
pistoleiro, o velho força sua perna contra a lâmina da faca, que
desce rasgando sua pele e seus músculos até a altura do joelho.
- Não
te causa dor, nem te provoca agonia, mas te debilitas como a
qualquer um – disse o pistoleiro, rolando o corpo para mais longe
do velho.
- Tolo!
O poder dela me regenerará! - gritou, erguendo os braços e a
cabeça. No mesmo instante o ferimento da coxa, de onde não saiu um
filete sequer de sangue, começou a ferver e a fechar.
- Tolo és tu! - gritou
Roland, puxando seu revolver, o também azulado, e atirou.
A bala foi certeira à
cabeça do velho, entrando pelo queixo e saindo pelo topo. Sem
qualquer gemido ou lamento, o corpo caiu com um baque seco. Deveria
estar acabado.
- Eu te vejo – disse
o corujo, se aproximando. Com as mãos firmes ajudou o pistoleiro a
se levantar – Temos o que confabular.
Roland assentiu com a
cabeça.
- Mas, primeiro, um
mate – e sorriu com os dentes cheios de sangue.
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