Estávamos sentados em cadeiras de praia, à seis passos da porta da frente, já fora da cobertura da área. Era uma noite fria, e mesmo assim eu estava de bermuda e ela de regata. Olhávamos para a lua escondida atrás dos galhos das árvores do pequeno pátio, bebendo cada um uma lata de cerveja quase tão gelada quanto minhas pernas.
Eu me sentia uma garotinha, como as irmãs dela que dormiam silenciosamente dentro da casa. Era a minha primeira cerveja e a zilhonésima quinta dela; isso que tínhamos um ano de diferença encobertos pela mesma série na escola. Conversávamos sobre qualquer coisa, sentados com pouco espaço entre as cadeiras.
Ela me contava sobre algum menino com quem tinha ficado, eu falava sobre alguma “ex-namorada de dois ou três meses”. Ela falava sobre amigos, futebol e a vida. Eu pensava o quão ridículo ela devia me achar sempre atulhado no meio dos livros, de games, computadores e jogos de tabuleiro. Ela pintava o cabelo com papel crepom para sair de noite, enquanto eu limpava os óculos para assistir TV até a hora em que ela voltasse para casa; quando ela chegasse errando a chave, eu correria da sala até a cozinha e abriria a porta antes que ela tentasse acertar a fechadura uma segunda vez; Eu ofereceria fazer-lhe um café forte, ela me mandaria dormir dizendo que estava bem, e eu teria que apoiá-la até seu quarto.
Aquilo – o frio, a cerveja e a voz dela – estava me entorpecendo de uma maneira agradavelmente desagradável, e de forma consentida eu me deixava levar como se cedesse à um confortável e inoportuno sono. Foi quando ela me perguntou o porque eu estava tão quieto e, sem sentir, eu lhe perguntei o porque não nos dávamos tão bem.
- Como?
- Porque não nos damos bem? Porque tu não gosta de mim?
- Eu gosto de ti...
- E porque me dá tão pouca atenção?
- Como pouca? A gente tava conversando até agora... A gente, só, sei lá, não tem tanta coisa em comum, talvez.
- É...
E o silêncio tornou a nos encobrir com seu véu triste. Eu me perguntava o porque aquela maldita latinha não tinha fim, enquanto ela bebia com a calma de quem sabe que a cerveja não vai esquentar. Naquele silêncio desagradável, ela não tirava os olhos da lua, e eu, disfarçando o melhor que podia, mal desviava o olhar dela. Minha visão já se acostumara com a pouca luz, e eu via com perfeição seus braços arrepiados de frio, os mamilos eretos de seu busto bem desenhado – mesmo sem sutiã –, e seu rosto de traços marcantes e doces.
Foi quando ela reintroduziu o assunto:
- Eu gosto de ti, sério.
- É, também gosto de ti. Muito. Eu te amo.
- Nossa! Declarações à luz do luar.
- É.
- Eu gosto de ti, sério.
- É, também gosto de ti. Muito. Eu te amo.
- Nossa! Declarações à luz do luar.
- É.
Ela riu. Parecia divertida com a situação. Parecia entender. Ou não. Bebericou da latinha sem me olhar. Deu pouca importância, eu já esperava por isso. Deveria ter me calado, se é que falei alguma coisa à que ela se lembre ao fim da lata. Suspirei e bebi um gole grande e quase me afoguei; tossi rouco, quase seco, mais por susto que por outra coisa. Tive certeza de que ela sorrira, mas seria impossível ter certeza. Seria como uma vingança pela vez que eu lhe dei um caldinho; estávamos na praia, dentro do mar, com a mãe dela, quando, do nada, pulei para cima dela e empurrei-lhe a cabeça para baixo, de repente, e a fiz engolir água até pelos olhos. Eu ri e esperava que a mãe dela risse também, mas não foi assim que aconteceu. Levei o maior xingão da minha vida: a tia me explicou, o mais delicada e, ao mesmo tempo, mais rispidamente possível o quanto o que eu tinha feito era errado e ruim.
Estava frio na rua, muito, muito frio. Queria entrar logo, acabar com aquilo e ir dormir. Que se explodisse ela e todo o resto. Minha cabeça estava zonza, minhas pernas geladas e as mãos entorpecidas do gelo da lata. Havia falado demais, e ela iria rir de mim por toda a vida. Onde já se viu, eu, um reles mortal, apaixonado por ela. Ela vivia num universo muitíssimo diferente do meu: eu era um bundão; ela, uma mulher feita. Ao menos era o que eu achava, aos 12 ou 15 anos... Ou desde sempre até então.
Eu queria poder tocar seu braço, oferecer meu casaco, pegar em sua mão, lhe roubar um beijo, qualquer coisa. Tudo que fiz foi terminar a droga daquele líquido amargo, amarelo e de cheiro ruim. Ainda sentado naquela droga daquela cadeira de abrir, naquela droga daquele frio que só não me rasgava as pernas porque não tinha vento, sob aquela droga daquela lua semi-escondida pelos galhos. Olhei a porra da luz da lua caindo por seu rosto, beijando sua pele, e eu ali, só olhando.
Suspirei, pensando no que seria o futuro para nós. Me perguntei se manteríamos nosso convívio, desejei que possamos criar nossos filhos com um nível de proximidade parecido com o nosso. Me enchi de expectativas no futuro. Então me levantei, lhe roubei um beijo. Queria que fosse ao menos no rosto, mas a coragem me faltou: beijei-lhe a testa. Ela me olhou, mas a minha sombra impediu entender sua expressão. Virei-me, e sem olhá-la, fechei a cadeira e me dirigi à porta. Já estava entrando em casa, quando tive a impressão de que ela havia dito alguma coisa. Hesitei antes de me virar, e quando o fiz ela estava de costas. Talvez tivesse acabado de se virar, talvez nem tenha se mexido.
Virei-me novamente, lhe disse boa noite, e entrei na casa. O dia amanhã era incerto, depois de ter falado demais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário