Este conto é uma continuação do Lábios da Morte. A ideia era escrever crônicas sobre Os 7, mas não sei se sai...
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Ela atravessou a rua olhando para os lados. Não que
aquela hora da noite, com a saída da escola, ela estivesse
preocupada com automóveis. Seu olhar vasculhava as sombras,
procurando ver algo que seu coração aprendera a esperar. Ele viera
acompanhá-la todas as noites, desde o começo do semestre. Nem
sempre na mesma hora, nem sempre no mesmo lugar, mas invariavelmente
todas as noites.
O coração de Catherine ficava apertado com a
proximidade do fim da aula, todos os dias: tinha certeza de que ele
não viria, mesmo ele tendo dado a sua palavra e tendo sempre
honrado-a. A cada dia, com a expectativa aumentando conforme as horas
passavam, ela tinha certeza de que fizera alguma burrada na ultima
noite, de que falara alguma besteira, de que ele perdera o interesse
nela. O que era pior é que ela nem sabia que tipo de interesse ele
tinha por ela. Eles conversavam o caminho todo, sobre tudo... e sobre
nada.
Kattie morava a pouco mais de três quilômetros da
escola. Era longe o suficiente para que ela pegasse uma lotação,
mas era perto o suficiente para que a empresa de transporte público
achasse desnecessário um micro-ônibus naquele trecho. Era longe o
suficiente para que uma jovem sozinha fosse assaltada – e coisa
pior –, mas era perto o suficiente para que eles tivessem que,
aparentemente, cortar suas conversas no meio.
Ele não havia aparecido ainda, quando ela cruzou a rua,
ladeou meia quadra e virou a esquina. Seu coração pulsava nas
têmporas e ela repetia mentalmente que ele não viria. Estava
começando a ficar com medo a)
por ele, pois poderia ter acontecido alguma coisa grave desde que se
viram pela ultima vez; e b)
por ela, pois poderia acontecer alguma coisa grave antes que ela
conseguisse chegar à segurança de seu lar. Logo à frente, ela
precisou atravessar outra rua, olhando para todos os lados,
literalmente.
Ela chegou à outra esquina já mentalmente – mas não
emocionalmente – conformada. Puxou a bolsa mais contra o próprio
corpo, submergiu o que pode nas sobras e acelerou a caminhada. Passos
se aproximaram e ela tentou baixar a cabeça, na tentativa instintiva
de passar despercebida. Tentou. Alguém segurou firmemente seu queixo
e ergueu seu rosto para cima, enquanto parava à sua frente. Seus
olhos se enxeram de lágrimas de pavor antes que ela visse quem lhe
abordava.
- Tu
me assustou – ela disse, com um arrepio. Eles nunca haviam se
tocado, não pele com pele, e isso
a assustou, a frieza da pele.
- Desculpe – o tom dele era doce, mas não escondia
certa frieza – como a de sua pele – que ela acreditava ser
apenas impressão dela.
Catherine o perdoou no momento em que o reconheceu, ele
não precisava se desculpar.
Eles percorreram o caminho de sempre, conversando as
amenidades de sempre. Ela não lembrava direito de como se
conheceram, nem se importava muito. Tecnicamente, ele sempre esteve
ali para ela, sempre a acompanhou naquelas ruas escuras, sempre a
levou para casa, desde o começo do semestre... ou antes? Ela tinha
mesmo certeza de que ela o conheceu apenas este ano? Ela podia
afirmar, com certeza, que ele não a levava pela mão, da escola até
em casa, desde pequena? Também não importava. Nenhum pouco.
À uma quadra de casa, Kattie parou. Eles nunca haviam
mudado o trajeto, mas ela também nunca vira o rosto dele direito: a
pouca luz dos postes do caminho sempre omitiam, de alguma forma, a
face dele. Pouco antes, quando se encontraram naquele dia, eles
haviam se tocado pela primeira vez... talvez fosse aquele o dia de
muitas primeiras vezes para eles.
Ela atravessou a rua em
direção à uma pequena praça. Ele não a seguiu, mas Catherine
virou-se e lhe sorriu, convidando-o. Ela já estava sentada em um
balanço quando ele “tomou coragem” e a seguiu. Os três postes
iluminavam com uma luz forte e branca o centro da praça,
transformando as ruas à volta em sombras que aqueles
postes não conseguiam dissipar.
A luz banhou seus pés e subiu por suas pernas até lhe
revelar por completo... ou quase. Ele vestia-se todo de preto; usava
allstars, jeans desbotados e uma camiseta larga e ilustrada com o
busto de Darth Vader. Mas quando parou à sua frente, seu rosto
estava contra a luz – proposital (não que ela soubesse) e
levemente (não que ela percebesse) abaixado – e imerso na sombra.
A única coisa exposta era seu sorriso, bonito e malvado... não de
safadeza, mas de maldade. E ela sentiu um calafrio com aquela
expressão.
- Malkan... – mas ele a interrompeu: sentando-se no
balanço ao seu lado, levou o indicador aos lábios dela.
Ele curvou seu corpo, aproximando o rosto – em fim
completamente iluminado, e que por si só a fez perder o compasso da
respiração – do dela. O olhar de Kattie estremeceu, mas ela
permaneceu quieta, esperando. Malkan se aproximou mais, seus lábios
a pouca distância dos dela. Ele se aproximou mais – o que a fez
prender o ar – e desviou o rosto, mergulhando-o contra seu pescoço.
Ela não teve tempo de perder o fôlego.
A dor rápida e marcante, daquelas que permanece sob a
forma de uma coceira ou algo assim pelos dias próximos, foi logo
substituída por uma sensação que Catherine nunca havia
experimentado. Era como se não houvesse nada além deles... da boca
dele em seu pescoço, dos braços dele em sua cintura e nunca. Ela
percebeu que ele a havia tirado do balanço e que estavam em pé, mas
ela se sentia flutuar.
Kattie gemeu baixinho com o prazer que lhe arremeteu a
estranha sensação proporcionada por seu sangue saindo de seu
pescoço, um filete quente e gostoso escorrendo lento por ele. Seu
corpo estremecia e ela se sentia em paz...
Foi quando as visões
começaram. Ela viu, pelos olhos dele, os corpos das meninas com as
quais Malkan se banqueteara. Todas elas aparentemente da mesma idade
que ela,
com cabelos aparentemente da mesma cor e, apesar da luz... Oh!,
droga, todas
tão parecidas com ela!
Malkan a soltou, empurrando-a pelos ombros, dando vários
passos para trás, tropeçando e perdendo o equilíbrio. Entorpecida,
Kattie sentiu a cabeça girar e teve de apoiar-se na estrutura do
brinquedo para não cair. Ele a olhava com uma expressão de pavor, e
ela sorriu amarga e mentalmente: aquele deveria ser um joguinho dele,
uma forma de dar esperanças à vítima de que talvez ela, em vista
das outras, sobreviveria; talvez o sangue fosse mais gostoso quando
temperado com uma desilusão assim. No mesmo instante em que pensou
nisso, ela soube que não, que a reação dele era outra coisa... a
reação dele era...
O vampiro apontava um
dedo trêmulo, sua boca suja com uma única listra em um canto
balbuciando uma palavra aleatória (?). Você.
Silenciosamente, ele a apontava e deixava claro que era ela... que...
Então Catherine se lembrou. Não como a gente lembra de
uma brincadeira da infância, do primeiro beijo, ou do dia de ontem,
por mais recente que pareça em nossa memória. Lembrou como nos
lembramos quem somos, nossos nomes, onde moramos, à que núcleo
familiar pertencemos e que família formamos, no exato momento em que
acordamos. Ela se reconheceu. Mas não como nós nos reconhecemos...
talvez como alguém com amnésia é capaz de reconhecer as próprias
mãos ou o próprio rosto. Como se o corpo (ou a alma) tivesse uma
memória a parte – e melhor – de a da mente.
Ela se viu de mãos
dadas com ele, andando pelas ruas, voltando... voltando de algum
lugar. Eles sorriam, conversavam. Ele a chamava por outro nome, mas
que era o seu
nome naquele momento, e lhe acariciava o rosto. Ela também se
lembrava de vê-lo do chão, pela ultima vez antes de nunca mais
enxergar, e de como ele parecia apavorado olhando dela para algo que
fazia sombra à sua frente.
Kattie olhou o vampiro
à sua frente com aquela mesma expressão de pavor. Chamou-o pelo
nome, e as pernas de Malkan fraquejaram, deixando-o sentado na areia.
Catherine se aproximou, repetindo aquele outro
nome dele. Ela abaixou-se, acarinhou seu rosto e lhe disse que estava
tudo bem... que ele sabia o que fazer, e que ficaria tudo bem...
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