A bruja
sabia tudo que ele tinha feito, cada passo que havia dado em sua
mente. O que era estranho, porque ela não parecia sábia o
suficiente para sequer conhecer aquilo. De qualquer forma, ela não
mentia, não havia mexido em suas memórias: as caixas estavam caídas
das prateleiras, mas não abertas.
Era desconfortável. Muito. Principalmente porque ele
estava deitado em uma cama. Uma cama! Roland não era criativo, então
não lhe passava pela cabeça qualquer justificativa para estar ali.
Porque, ele queria saber. Porque sim, era a resposta
dela. Ele tentara iniciar uma conversa, de forma respeitosa,
chamando-a por velha mãe. Ela deu um sorrisinho amarelo, de canto de
boca, e lhe interrompeu dizendo que não era tão velha assim. Ele
entendeu imediatamente: ela era uma jovem poderosa, não uma velha
sábia. Ela era inconsequente, não calculista. Ainda assim, ela era
perigosa demais.
- Eu
sei o que tu pretendes. O hombre en
negro me
avisou sobre ti.
Roland calou-se. Qualquer coisa que dissesse agora seria
usado contra ele. Olhá-la sem frieza deveria bastar.
E bastou.
- Sei
lo que
vieste hacer aquí,
pistoleiro – o gaucho
(não) estremeceu ante aquela palavra – pero,
el viejo no
te disse o todo. Se dissesse a verdade, tu no
virias até aqui. Se ele mentisse, tu perceberias y
también no
virias.
O homem tentou levantar-se; aquele era um bom momento
para estarem à mesma altura física. De onde estava, ela facilmente
se sentia superior, com ele em uma posição de fragilidade. Tentou,
mas não conseguiu. A dor de cabeça, ao acordar, era tão intensa
que ele acreditou não sentir dores pelo restante do corpo. Agora ele
percebia que, na verdade, não sentia nada do pescoço para baixo.
Procurou não demonstrar, mas já era tarde.
- Machucaste
as costas. No
esperava ferir-te, pero...
Bueno,
cuidarei de ti, no voy a salir de tu
lado hasta
que te recuperes – ao seu lado havia uma mesinha. Sobre esta, uma
cubuquinha que a bruja
tomou nas mãos – Beba, te fará melhorar rápido.
Roland pesou as possibilidades. Se quisesse matá-lo, já
o teria feito. Se quisesse seus segredos, teria buscado em sua mente
quando pôde. Com um sorriso de agradecimento, sorveu da primeira
colher. A cada colherada ganha, sentia-se mais leve e sonolento, ao
mesmo tempo que sua dor parecia desaparecer. Não saberia precisar se
sonhava ou não ao ouví-la raspar a colher no prato.
Quando acordou, ela estava novamente ao seu lado.
Decidiu manter a noção de tempo. Quando tomou a sopa a primeira
vez, era dia. Agora, noite. Conversaram amenidades, e ela lhe serviu
outra sopa. Apenas pelo cheiro ele foi capaz de perceber que eram
diferentes. E na terceira vez que despertou era noite. Quis crer que
era a mesma noite, mas seu estômago roncava de fome.
Tentou manter a cabeça clara, mas parecia impossível.
Acordava ora de dia, ora de noite, por vezes consecutivas à noite,
por vezes, ao dia. Só pôde ter certeza que a primeira sopa, a mais
apimentada, lhe permitia dormir menos, já que não acordava com
tanta fome; enquanto a segunda, de gosto mais acridoce, lhe fazia
dormir mais.
Os sonos não eram
tranquilhos, nenhum pouco. Eram tomados de pesadelos terríveis e
lembranças piores ainda. E acordado, suas esperanças não eram
melhores. A bruja
parecia cada vez mais feliz por sua estadia ali, sua total
fragilidade e incapacidade. Talvez ela não estivesse tentando
curá-lo. Apenas querendo mantê-lo vivo, como confortável companhia
que nunca a deixaria.
*
Quando abriu os olhos, ali estava Gabrielle. Roland não
tinha certeza, mas ela deveria ter pelo menos 17 anos quando ele
nascera, ainda assim não conseguia lembrar dela com a aparência de
quarentona que deveria ter quando moço. Para ele, a aparência de
sua mãe seria para sempre a de uma moça de 15 ou 16 anos. E ali
estava ela, lhe sorrindo.
Estavam no meio do pasto da estância de seu pai, mas
não havia qualquer animal. Caminhavam, como cansaram de fazer,
próximo à invernada, mas não havia mais nada. Animal, plantação,
grama... nada em lugar algum à vista. Não era como Roland se
lembrava, mas era como imaginava que tinha ficado depois de tudo
aquilo. Não conversavam: os lábios dela estavam fixos naquele
sorriso que fazia seu filho pensar em morte; mas ainda assim a voz
dela ecoava por seus ouvidos como uma canção de ninar há muito
deixada para trás e que só se é capaz de recordar palavras soltas.
A Torre, os Doze Guardiões, a Alma Farrapa e o coração doce da
prenda escolhida.
Quando virou o rosto
novamente em sua direção, não era mais sua mão ao seu lado, mas
Susana. Roland lembrava de seu rosto quase nitidamente como era no
dia anterior à fogueira. Ele era incapaz de lembrar, como se alguém
tivesse lhe tomado à força essas memórias, de que fogueira era
essa, mas tinha certeza de que sua amada havia morrido em decorrência
dela. O gaucho
quis tocá-la, mas não pode: seus braços pareciam congelados junto
ao corpo, ao vislumbrar em seus lábios rosados o mesmo sorriso de
morte de Gabrielle.
Desviou o olhar, e já não estavam no campo. Roland
havia descrito vezes mil à Susana sobre onde estavam agora, e
quisera muito tê-la levado lá. Era a Sala do Tempo de sua mãe: um
amplo salão construído para ser ventilado e fresco nos dias
quentes, mas conservar toda a caloria produzida pelo grande fogão à
lenha – a segunda peça mais importante dali – nos dias frios.
Seus pais costumavam receber os amigos mais íntimos nos tempos de
paz, e foi onde Bento foi aclamado como o general que os guiaria em
defesa contra as investidas do Império.
Roland e Susana olhavam
para uma tapeçaria antiga que decorava toda a parede norte: a
Árvore. Gabrielle costumava contar sobre a linhagem dela – e dele
–, mostrando os nomes bordados e declamando os feitos. O gaucho
sempre desejara declamar ele próprio, pela primeira vez, cada um
daqueles longos e belos poemas à sua prenda, quando lhe tirasse do
Prata, já casados. Agora estavam ali, tantos anos depois de sua
morte, e ele não era capaz nem de olhá-la. Não precisava, de
qualquer forma: a voz dela sussurrava uma milonga que ele conhecia
bem, sobre tudo que eles também sentiram juntos, sobre como foi
doloroso perdê-la para a Eternidade e de como ela o amava ainda
assim.
Roland acordou
chorando. A bruja
lhe olhava com um quê de surpresa, mas ele não tentou disfarçar.
Estava satisfeito com a certeza de que não precisara narrar à
Susana os feitos de seus antepassados: ela já os sabia de cor pelos
lábios de Gabrielle.
*
O gaucho
estava gritando “avante!”, já no meio de um campo de batalha.
Tentavam atravessar a divisa da Província quando foram emboscados
pelos Imperiais. Os lanceiros cobriam a retaguarda com mais honra e
bravura que os soldados treinados que Roland liderava pela frente.
Estavam cercados, e sem grandes chances de fuga caso surgisse uma
oportunidade. Ele morreria lutando, assim como seus lanceiros. Seus
amigos também, diferente de seus soldados que pareciam procurar pelo
momento certo de mudar de lado.
O problema é que, diferente de todos os demais
dispostos à morrer, Roland sobrevivera. Os enfrentamentos costumam
ser confusos enquanto ocorrem, e costumam ficar mais e mais
desconexos conforme o tempo e a memória trabalham sobre os gritos de
dor e raiva, sobre o som tilintante do metal contra metal e o som
abafado e úmido do metal contra a pele e a carne, sobre o calor da
movimentação das muitas pessoas e o calor do sangue que se acumula
no mais pequeno arranhão e que jorra do mais profundo ferimento,
sobre o estrondo das armas de fogos, sobre o cheiro ferroso do sangue
e o cheiro de pólvora queimada.
O problema é que,
diferente de todos os que queriam fugir e sobreviver, Roland.
Cuthbert estava quase à seus pés, com um olho fechado enquanto o
outro, fora da órbita, parecia lhe encarar. Seu melhor amigo
segurava o Chifre firmemente na mão esquerda, enquanto a arma já
havia escorregado de sua mão direita. O gaucho
não consegue se lembrar de ter sequer se abaixado, mas o Chifre
estava em seus pertences quando chegou em casa. Alaide estava
encoberto por alguns lanceiros; morrera protegendo um deles que fora
gravemente ferido, morrera sendo protegido pelos outros cinco que
formaram um círculo em seu entorno. De João, sobrara uma massa de
carne, osso e tecido pisoteada pelos cavalos Imperiais. Não se
lembrava de ter olhado tempo suficiente para os rostos de seus
mortos, mas apostaria sua vida de que na face de cada um dos três
estava o sorriso de morte de sua mãe.
E Roland estava
sozinho, no meio de mortos por todos os lados. Já não havia
diferença entre cor de pele, ou mesmo entre homem e cavalo. Seus
sangues se misturaram no chão e seus corpos apodreceriam lado a lado
pelo correr dos dias. Aquela era a última batalha: o Império havia
ganho a guerra, e o gaucho
teria apenas tempo de partir novamente antes de tomarem a Província.
Não deveria ter ocorrido, era contra o Tratado... mas ninguém teria
ouvido, aquilo era apenas a demonstração de que o documento de nada
tinha valor aos Imperiais.
Quando acordou, recebia
a estranha sopa, na boca, pela bruja.
“No fim, te apiedaste de mim”, disse, e sua resposta foi o
sorriso de morte num rosto muito mais novo do que Roland lembrava
naquela mulher.
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