Alguém bateu na porta. Landau levantou do chão. O
padre, sentado à uma poltrona perto da entrada do escritório,
apenas olhou em direção às batidas.
- Não vai abrir? - indagou. Tinha ouvido a porta ranger
quando se abriu para ele entrar, e ainda não ouvira o rangido
novamente.
- Sim, senhor. Por favor, aguarde aqui.
“Claro”, dissera o
padre. Landau abriu a porta e saiu. Lisa lhe lançava um olhar
assustado e, ao mesmo tempo, ameaçador. O chefe da segurança lhe
abraçava pela cintura, amparando seu peso, enquanto ela segurava um
braço quebrado.
- Como...? O que...?
- Jonathan! Rômulo o ajudou a fugir! - a voz de Lisa
soava como uma gargalhada histérica. Na verdade, Landau se esforçou
para negar o sorriso que via no rosto da enfermeira.
O médico pareceu primeiro mais confuso, depois com
raiva. Quando Lisa esperou que ele explodisse aos gritos, Landau
recobrou o controle e disse calmamente:
- Lisa,
vá engessar esse braço. E você
– o indicador quase encostando no rosto do chefe de segurança –,
pegue-o. Agora!
Nenhum dos dois discutiu. Saíram mancando, a enfermeira
jogando seu peso contra o corpo do homem, com uma luxação inchando
num calcanhar.
O médico abriu a porta e olhou para dentro. “Vamos
dar uma volta, padre?”
*
Johnny caminhava devagar. Por impulso, quase instinto,
havia saído correndo do quarto, enquanto mal registrava o rosto
apavorado das pessoas à sua volta. Entretanto, de fato, não poderia
afirmar que tinha alguém ao redor. Era capaz de vê-las quando passa
por elas, mas não enquanto se aproximava. À sua frente havia apenas
um corredor sujo e mal iluminado; aos lados, como fantasmas
perceptíveis apenas com a periferia da visão, homens e mulheres,
uns de uniforme branco, outros com uma espécie de roupão azulado,
em um corredor limpo de paredes brancas.
Logo, Jonathan estava cansado demais, fraco, para
continuar correndo. Seu abdômen doía e os pulmões ardiam. Seus
joelhos começaram a falhar e os músculos das pernas à sofrer
rápidos espasmos. Seu corpo obrigava-o a parar e a mente já não
conseguia conceber um sentido para continuar. Estava confuso, a mente
fervilhando com... um nada?, um vazio? O que era aquilo tudo? O que
estava acontecendo? Onde estava? Quem era ele próprio?
Nada parecia fazer sentido. Do pouco que conseguiu
reunir, não tinha praticamente resposta alguma: lembrava ter cerca
de 12 anos – entretanto, o espelho mostrara alguém de quase 30 –,
estava em um – estranho – hospital e estava fugindo. Porque
estava no hospital, o que acontecera em “seu” quarto e do que
fugia, não tinha certeza. Sua cabeça fervilhava ao pensar na brecha
de dez ou quinze anos, desde a idade que lembrava ter para a que
realmente tinha. Lembrava também que seu nome era Jonathan Blake, e
que era chamado de Johnny... mas por quem, não conseguia
recordar-se.
Pela reação do segurança, a única coisa que podia
supor é que o homem tentara ajudá-lo, de alguma forma. Mas pensar
em porque e pelo que aquele estranho tentara lhe ajudar...
Sem que percebesse, não havia mais ninguém em sua
visão periférica. Onde sua visão alcançava, tudo que havia era um
corredor sujo e mal iluminado. Poucas lâmpadas estava queimadas,
algumas piscavam e outras pendiam presas apenas pelos fios elétricos,
e a iluminação precária era tão que era quase capaz de esconder o
deplorável estado de abandono do hospital.
As paredes desbotadas, descascadas e mofadas mostravam,
em muitos pontos, seus metálicos esqueletos estruturais e suas veias
e artérias de canos enferrujados. O chão era pontilhado de manchas
grandes e pequenos respingos de sangue seco e bolorento. O cheiro
forte de umidade e mofo tornava o ar velho e pesado, como se portas e
janelas estivessem trancadas há anos. O teto respondia aos passos
cumprimentando-o com uma chuva poeirenta de concreto, e Johnny não
fazia ideia do porque, justamente ele, fora preso em um lugar como
aquele.
Estava sozinho no escuro, com o estômago embrulhando
aquela estranha refeição – que parecia a única depois de muito,
muito tempo. Havia dobrado umas duas esquinas e avançado por três
longos corredores, ao todo. Acabara de chegar ao saguão central.
Aproximou-se do balcão, quase sem perceber, e
escorou-se nele. Na parede ao seu lado estava um mural com avisos
comuns: horários de visitação, “proibido fumar”, “faça
silêncio”; e do lado deste, um mapa do andar. Jonathan percebeu
que, no mapa, havia a frase “você está aqui”, mas não o local
marcado. Aquilo parecia com as plantas baixas que fizera a escola,
como uma lembrança perdida.
“Ala Psiquiátrica” e “Hospital Saint Matthew”
estavam escritos no topo do mapa, acompanhado de um emblema estranho
– algo como um livro e uma balança – no canto superior esquerdo.
O andar era composto por seis corredores principais, chamados de
“milhas” e da cor correspondente; e quatro corredores menores que
recortavam ao meio, em ângulos retos, as quatro “ilhas” de
quartos e salas formadas pelas milhas, mas eram todos brancos no mapa
e sem nomes. Tentando retraçar o caminho que fizera, acreditou que
seu quarto ficava na “milha verde”. A recepção, onde estava,
ficava no centro do andar, exatamente onde as milhas azul e lilás se
encontravam.
Incerto de como sair dali – já que as escadas estavam
nos extremos da construção e ele, Jonathan, bem no meio –, olhou
em volta com um suspiro. A recepção era um grande balcão redondo
no centro do hall, que tinha um elevador em cada um de seus cantos. A
abertura dos elevadores eram mais largas do que altas. As portas
abriram, uma a uma, enquanto Johnny as observava, mas elevadores não
estava ali – pareciam negar-se a descer, provocando um estalar alto
– dando aos quatro buracos a angustiante aparência de bocas
escancaradas e famintas, que engoliam em seco à espera.
A luz bruxuleou, as lâmpadas que ainda funcionavam
piscaram uma última vez, e tudo ficou escuro. Sua visão percebeu um
vulto passando por um dos corredores, e Jonathan piscou forte e
várias vezes – inconsciente de que tentava obrigar seus olhos à
se acostumarem com o escuro. Ouviu um arrastar de pés seguido de um
baque surdo – um frio úmido lhe subiu pela coluna, da bacia até a
base do crânio –, e, virando-se, ouviu o gutural som reconhecível
da ânsia trancando a gargante e o jorro saindo pela boca e cobrindo
o chão.
Afastou, sem perceber, os pés da poça que se formava,
se aproximando de costas para a boca escancarada de um dos
elevadores. Entre ele e o balcão estava uma enfermeira ajoelhada. A
luz era fraca, mas não o suficiente para impedí-lo de reconhecer o
sangue se espalhando pelo piso. Ela vomitava incessantemente: o som e
o cheiro eram terrivelmente nauseantes, e Johnny teve de trancar a
respiração para não vomitar também.
Deu passos hesitantes em direção à mulher caída, ao
mesmo tempo desejoso e enojado demais para ajudá-la. Ela parara com
os jorros momentos antes dele fazer uma pergunta que sabia ser
estúpida, mas que lhe saíra mais rápido que pudesse conter: “moça,
tudo bem?”. Foi quando seus olhares se cruzaram que tudo começou.
A enfermeira abriu novamente a boca cheia de sangue, que
escorreu pelo nada limpo uniforme. Os olhos tornavam-se vermelhos
enquanto deixavam escorrer lágrimas tão vermelhas quanto. O lábio
superior da mulher se rasgou com um som doloroso, forçando seu rosto
a amplificar sua expressão de desespero.
Ela levou a mão à boca, como se quisesse tocar o
lábio; quando baixou-a, a palma estava cheia de dentes com raízes
sanguinolentas. “Me ajude”, ela disse, a voz distorcendo conforme
o rasgo vertical aumentava, subia pelo nariz, e seu olhar perdeu-se,
tornou-se vago, vidrado. Os olhos esbugalharam mais e mais até
saltarem das órbitas, balançaram presos pelos nervos e veias, então
caíram, um, entre os dentes, na palma da mão ainda estendida, o
outro se espatifou no chão como uma fruta podre.
A fenda subiu por entre os olhos, rasgando o nariz. A
boca retorceu-se em um último ato humano. Os ossos se separaram na
direção do rasgo, forçando a cabeça a se abrir em uma imensa boca
vertical. Com o cérebro à mostra, os ossos se realinhavam, formando
estranhos dentes grandes e pontiagudos. A pele se repuxava,
transformando o nariz, os lábios e as pálpebras em massas amorfas,
cobrindo as narinas, as orbitas oculares e a boca humana. A epiderme
tornou-se roxa, apodrecendo levemente, perdendo pedaços e deixando
feridas purulentas.
O cheio era horrível. Seu corpo pendeu para trás, e
Jonathan recuou involuntariamente até a porta de um dos elevadores.
O carro não havia descido, talvez nunca mais descesse... não para
ele. Desequilibrou-se quando seu pé escorregou no degrau; viu a
enfermeira esticar os braços, as mãos de unhas negras em sua
direção. Ela avançou, rápido demais para seus passos
cambaleantes. “Cuida...”, pareceu gemer, e Johnny, caindo para
trás, teve medo que aquilo tentasse lhe ajudar. Jogou o peso para
frente, se jogando ao chão. Rolou para o lado e saiu correndo em
quatro pés.
Não parou para se levantar. Provável que só tenha
conseguido pôr-se ereto por medo de ser alcançado. Não pensou
quando foi refazendo o caminho de volta para seu quarto. Não faria
muita diferença, de qualquer forma: havia uma escada próxima.
Quando fizera o caminho até a recepção, não havia ninguém; na
volta, também não deveria haver alguém...
… mas havia.
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