O gaucho
mateava em silêncio, observando a pequena vila: haviam apenas quatro
casas largas, mas não compridas. Era estranho estar novamente entre
pessoas. Observava, saboreando o amargo com calma, para os três piás
conversando. Os dois que haviam fugido não acreditavam que o outro
voltara vivo, enquanto este ria-se dizendo que obrigara ao homem a
trazê-lo.
Mesmo duvidando (cada vez menos), os maiores ouviam o
pequeno com atenção redobrada, sobressaltando-se sempre que o
gurizinho erguia as mãos, falava mais alto ou dava uma ênfase maior
ao que dizia. Certo era que a história encompridava-se a cada vez
que era contada. O homem não se importava como sua imagem ficaria
entre as crias daquele fim de mundo, mas era divertido pensar em que,
talvez, aquele piazito ganhasse certa “fama” de herói.
Quando a cuia roncou, com um suspiro de pesar,
entregou-a ao preto velho ao seu lado.
- Mas tu ainda não disse teu nome – disse o velho,
enquanto servia a água quente.
- Roland, velho pai.
- Pois escuite, Roland – e sorveu o chimarrão –
tento ensinar, mas naum aprendem, que é errado roubar. Pero, 'stou
feliz que tenham te achado.
- Mas... velho pai, não fiz mais que minha obrigação...
- Hasta porque querias teus pertences de vorta. Eu
vejo... eu vejo... Pero, escuite. E escuite bem. Tu atravessou este
mato como, fio?
O menino, transformado, guiara Roland pelo caminho todo,
da praia até a vila. Estavam presos um ao outro por dois laços:
desta forma, se o rato tentasse se desvincilhar, ou um laço se
apertaria com o movimento, ou o homem poderia estreitar o outro
puxando o seu lado da corda. O guri não tinha como fugir... como se
quisesse.
Nem bem dez minutos
dentro da floresta, o menino guinchou e parou. Roland já tinha
percebido, incluso sacado o facão. Um sanguanel, carmim como o
sangue, parou e olhou o homem nos olhos, e então continuou por entre
as moitas e árvores. O rato guinchou de pavor, ao ver a pequenita
criatura, e correu para os braços do gaucho,
que ria.
- Guiado pelo guri, velho pai.
- E guarnecido pelos 'spritos do mato, fio. Eu tô ruim
dos zóio, má naum do coração. A muito que eles naum deixam
ninguém passar. Meus guri se arriscam pra roubar cousa ou outra,
mas eu acho que os 'spritos não iam tirá desse pobre véio o poco
que le resta, nõ'á?! Pois escuite, fio, o Patrão Véio me disse,
mais d'uma veiz, que um hôme bom viria... e que esse hôme bom nos
guardaria e protegeria. Que esse hôme bom teria a alma farrapa e
que naum se assustaria com a peleia.
- Velho pai, eu não entendo...
- Calma. Tu descansa hoje. Por la mañana... - entregou a
cuia servida à Roland, levantou-se e entrou em sua tapera – Por
la mañana – e fechou a porta
A manhã não chegou à tempo...
Enquanto tomava o último mate, pouco a pouco, alguns
animais se aproximavam da pequena aldeia. Eram quatorze: uma coruja,
uma mulita, quatro cuscos, duas lebres, dois bugios, três tatus, um
cavalo. Com os guris no meio, os que viravam rato, eram dezessete.
Com o velho pai, dezoito. Isso já era o suficiente para deixar
Roland receoso. Mas, contando com o próprio Roland, eles eram 19.
Sentiu o corpo estremecer involuntariamente, e forçou-se para
impedir a reação. Levantou-se, a cuia ainda na mão.
- Noite! – e esperou que se transformassem.
Desconfiados, a
bicharada recuou, parecendo hesitar; à exceção da coruja, que voou
do galho em que sentara para observar Roland, aproximou-se batendo as
asas e, representando pousar no chão, foi crescendo e crescendo, as
penas sumindo, as garras virando pés. Quando caiu, leve, à frente
do gaucho,
era um moço jovem, bonito até, e com um olhar forte, perspicaz e
sábio. O olhar de uma coruja. Tudo que Roland via nos olhos do
menino-coruja, era o que este via nos olhos daquele: o olhar de um
matador.
- O senhor tem os olhos de um falcão.
- Acho que, vindo de ti, é um elogio – o homem tentou
sorrir, mas parecia impossível sorrir para alguém tão capaz de
colher uma vida, quando se encontra em certa desvantagem (mais moral
do que qualquer outra).
- O senhor é o dezenove. O senhor é o Homem Bom –
nenhuma foi pergunta. Roland não gostou delas.
- Eu sou apenas um viajante que, por azar, tropiquei com
esses meninos.
- Meus irmãos lhe roubaram. O senhor veio tomar o que
lhe é seu. Também nos roubam. Também queremos tomar o que é
nosso – Roland teria dito que era muito justo, mas foi
interrompido – O senhor vai nos ajudar.
- Creio não poder fazê-lo – o homem havia gostado do
velho e até se sentido com certa obrigação de ajudá-lo, mas o
tom daquele corujito não lhe agradava.
- O senhor não tem opção. Ou nos ajuda, ou não sai
daqui.
Roland levou a mão ao facão. Eram apenas crianças e o
velho certamente precisava deles para viver, mais do que eles
precisavam do velho, mas não baixaria a crista para um piá
qualquer. Ensinaria à coruja algumas lições com estouros de facão,
se fosse necessário. Daria de estouro nos dezoito, se fosse preciso
para sair dali. Não aceitaria uma ameaça de um piá metido à
besta... ainda mais de um piá com aquela frieza no olhar.
Mas Roland não chegou a desembainhar o facão. Um vento
frio varreu a clareira, vindo e indo de lugar nenhum, subindo pelas
costas do homem e lhe agarrando a nuca. A terra explodiu por todos os
lados, como se projéteis invisíveis estivessem alvejando barris de
pólvora enterrados.
Não havia tempo para
discussão. O gaucho
sentia uma presença pesada por todo o lugar, mas os sétimos filhos
seriam capazes de farejá-la. “Protejam o velho!”, gritou para
alguns; “Comigo!” gritou para outros. Não abrira a boca uma
única vez, o barulho das explosões impediria qualquer comunicação
verbal.
Correra para fora da
clareira. Sem se virar, soube que um grande grupo se reunia em torno
da cabana do velho. O protegeriam, o levariam para longe do ataque.
Roland corria sem olhar para trás, certo de que os poucos que
chamara consigo o acompanhariam, o guiariam até ela.
Os animais emparelharam com ele, o ultrapassaram. O
homem não os acompanharia tão fácil, não esperava que fossem tão
afobados. Porém, o cavalo diminuía a velocidade, convidando-o a
subir. O grupo avançara rápido, e a pressão na cabeça de Roland
aumentava. Seus olhos começaram a lacrimejar, e seus ouvidos
pulsavam como se fossem explodir. O ar queimava suas narinas e
parecia solidificar em seus pulmões. Só ele parecia sentir os
efeitos daquela emanação, e sabia bem o porque.
Onde tu estás?
Vá embora!
Preciso ter contigo!
Vá embora, gaucho,
ou não me apiedarei de ti! Vá!
Sabes que não poderá me enfrentar. Onde estás?
Vá! Leva essa marca contigo! Tu tá condenado com
ela! Leva ela daqui e vai!
Velha mãe, por favor.
Não confabularei contigo! Não terei contigo! Vá!
Se não?!
Ela não respondera; não com palavras. A visão de
Roland estava embaçada, e ele teve a sensação de que as árvores
haviam se retorcido, se mexido, que as raízes haviam saído da
terra, que os galhos haviam descido. Era tudo uma alucinação, ele
tinha certeza. A resposta dela era deixá-lo louco, pressioná-lo até
fazê-lo perder a coragem e desistir de sua busca final.
O cavalo relinchou e empinou. O bugio gritou de dor. O
cachorro rosnou alto e latiu. A coruja piava constantemente. O homem,
que cavalgava em pelo, escorregou das costas do bagual. Encontrara o
solo com uma pancada forte. O mundo inconstante em que Roland vivera
os últimos minutos, desaparecia numa escuridão indolor.
Por isso tu queria saber alguns animais daqui...
ResponderExcluirEstou gostando...