Havia amanhecido à pouco tempo. Mikail descruzou as
pernas e esticou os joelhos. Com um suspiro, abriu os olhos e
observou calmamente a poeira que dançava calmamente no raios de sol
que entravam pelas frestas da janela. Levantou-se e alongou-se até
ouvir cada junta estalar. Sentia-se bem: há muito não era capaz de
passar uma noite tão tranquila, sem qualquer barulho que lhe
despertasse. Quando desceu, encontrou os velhos já atrás do balcão
e o espadachim à uma mesa.
- Bom dia! – disse o pequeno – Me daria a honra de
uma companhia no desejum? Eu pago.
- Claro, porque não?
- Não.
É por conta da casa. – interrompeu o velho – Vocês fizeram um
imenso favor para toda a cidade. Algo que nunca poderemos pagar como
deveríamos. Aqueles
nos roubavam a anos, sem que ninguém pudesse impedi-los – e sumiu
pela porta da cozinha, resmungando baixo.
Mikail não se sentiu lisonjeado, mas o espadachim
sorria por detrás do chapéu de aba larga. Agora, pensando nisso,
Mikail percebeu que seu companheiro de mesa usava roupas próxima ao
dos povos bárbaros, mas de alguma forma estranha aos olhos.
Observando-o com calma, avistou as botas quase do mesmo tamanho das
suas.
- Achei que vocês tivessem desaparecido junto com o
Império – disse Mikail
O robit sorriu e retirou o chapéu. O rosto era marcado
por duas feias cicatrizes.
- Acho que vocês sofreram mais – “Tu não sabe o
quanto”, pensou Mikail – Sou Italus.
- Mikail.
- Fique sabendo que és viajante também. Estás indo
para onde?
- Não sei – respondeu, as costas começando a arder –,
só caminhar para mim está bom.
- Parece que estás fugindo – e riu alto
- Acho que só não tenho nada que me prenda a qualquer
lugar... – respondeu Mikail, sentindo as costas como se lavadas
por água fervente. O rumo daquela conversa não lhe agradava.
- É, sei bem como é isto. Tudo o que tinha se foi com o
Império. Agora, eu vivo de acordo com a minha lâmina, e isto me
serve – Italus tinha um olhar perdido enquanto falava, Mikail se
perguntou quantas lembranças aquele olhar escondia e, de repente,
suas costas não incomodavam mais.
A velha senhora chegou à mesa, sorrindo, com uma
bandeja quase grande demais para ela. Serviu os dois, que agradeciam
a cada artigo que era posto à mesa, até que ela terminou e saiu
corada. Passou pelo marido dando risadinhas e sussurrando algo sobre
a educação dos homens.
Os dois comeram não tão em silêncio quanto Mikail
gostaria. Para o andarilho, as refeições eram sagradas, um dos
momentos diários de reflexão e introspecção... e para isto era
necessário silêncio. Algo que certamente não havia, com Italus
falando sem parar. Por outro lado, Mikail fora obrigado a reconhecer
que ouvir o robit falando lhe agradava; era bom conhecer com quem se
dividia a refeição.
Italus contava sobre a cidade onde nascera, sobre como
fora sua educação nas mãos dos pedagogos aqueus, como fora seu
treinamento com a espada – sozinho e em fila, mais ofensivo e mais
defensivo. Dialogou com a – gigantesca em suas mãos – caneca de
suco de uva erguida à meio caminho da boca sobre como sua família
se endividara e que fora escravizado para pagar a dívida no lugar de
seu pai, já velho e doente – mas ainda com punho forte o
suficiente para manter seu patriarcado. Contou, com a boca cheia de
pão, como aprendeu as regras dos coliseus e em como ganhara fama o
suficiente para, mesmo depois de ter sua dívida quitada, permaneceu
nas arenas até a Invasão. E, por fim, com lágrimas, reviveu cada
momento da batalha final do Império e sua inevitável derrota.
O coração de Mikail estava com o de Italus até o
final da história, que fora neutra a maior parte do tempo. Não
houveram situações cômicas como há nas histórias dos velhos. A
única emoção presente foi a tristeza, no fim de seu relato, mas
não por saudosismo do tempo que se fora, mas pela tristeza
acarretada pela morte de todos seus entes queridos e amigos. Isto,
por óbvio, não saíra da boca de Italus, mas Mikail o soubera de
qualquer forma. Era em seus mortos que Italus pensava enquanto falava
sobre a Queda... e fora por eles que Mikail chorara discretamente.
O andarilho não contou sua história. O robit não
perguntou. Depois dos longos anos resumidos em poucos minutos, ambos
terminaram o dejejum em um silêncio desagradável, incômodo. Era
desagradável os sentimentos desprendidos por Italus, e era pior
ainda saber que qualquer outro não os teria captado.
Sentados, em silêncio, Mikail se perguntava sobre os
seus laços, sobre tudo o que lhe fora tirado e que ele já não mais
fazia ideia... se é que um dia fizera. Se perguntava como seria sua
vida hoje, se nada daquilo tivesse acontecido; se o destino teria
sido diferente, ou se tudo seria exatamente igual. Se ele estaria
sozinho, mesmo cercado de parentes, ou se estaria – de qualquer
forma – na estrada, fugindo, de um jeito ou de outro, de seus
consanguíneos e/ou conterrâneos.
Pensar no destino que lhe fora negado não era um
alento, ao contrário, era apenas mais uma forma de autoflagelo tão
comum contra si mesmo, e ao mesmo tempo tão inevitável... Tão...
agradável... pois era a única maneira que tinha de forçar sua
mente a lembrar-se dos rostos das pessoas que lhe cercavam, que lhe
cuidavam. Lembrar de imagens que o tempo insistia, cada dia com maior
intensidade, a apagar, a dissipar, desfazer.
Tempo... aquele velho titã despedaçado e aprisionado
no mais profundo limbo e que ainda assim era forte o suficiente para
desfazer a vida dos homens e das mulheres como se fossem todos
simples brinquedos, insignificantes brinquedos. Tempo... ah!, como
Mikail o odiava...
A velha veio com seus
passos incertos e hesitantes recolher a louça, e Mikail levantou-se
rápido para ajudá-la. Ela agradeceu dizendo que não precisava se
incomodar, mas o andarilho insistiu e, acompanhado do robit, seguiram
a velha que nada levou nas mãos. Depois de ter o agradecimento
tímido da velha, era inadiavelmente hora de ir. De novo, o Tempo lhe
empurrando para onde apenas ele próprio
sabia para onde.
À porta, o casal de velhos lhe agradeceram por tudo, e
Mikail desejava que o resto da cidade ainda dormisse até que
estivesse bem longe dali. Com seus poucos pertences às costas, o
andarilho apertou a mão do robit e partiram, um para... o mesmo lado
que o outro?!
Olharam-se e riram, Mikail sentindo uma graça a tempos
não sentia.
- À floresta?!
- À floresta.
- Então nos faremos companhia por mais algum tempo, meu
caro humano?
- Creio que não me importaria.
- Quem não quer a companhia de um petisco em uma
floresta de horrores gigantescos, não?!
E Mikail sentiu dissipar-se um pouco de toda aquela angustia que
circundava seu coração.
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