Ela era linda. Não ao meu gosto: era alta demais, magra
demais, com mãos e pés compridos demais; mas ainda assim era linda.
De uma forma mais clara, para mim, era para meu interesse olhar, mas
não pegar. Só que eu não sou a regra; na verdade, eu costumo ser a
exceção.
O que importa é que ela era uma guria tri interessante,
e sabia disso, por mais que negasse através de uma timidez em que eu
não acreditava. Eu conhecia aquele olhar sedutor. Nunca fora para
mim, nem o dela nem o de ninguém, mas eu o conhecia bem. E sabia que
funcionava muito bem.
Também tinha aquele jeito de falar, aquele tom
ronronante que surgia em sua voz quando reclamava que “os meninos
da equipe” ficavam cuidando as “estagiárias ridículas do ensino
médio”. Aquilo me dava calafrios só de ouvir, e evitava pensar em
como me sentiria se aquele tom fosse dirigido para mim.
Ela sabia que era uma das mais incríveis – pra não
dizer “a mais” –, o que talvez ela não soubesse era como ele
estava enredado. Ele estava caidinho por ela, completamente de
quatro, e ela não fazia a menor ideia do que estava acontecendo. E,
apenas isto, ela realmente não sabia.
Na verdade, talvez só eu o soubesse. Só eu sabia o
quão apaixonado ele estava, o quão ele era capaz de adorá-la,
venerá-la, por detrás daquela máscara de “bárbaro” que ele
insistia em usar. Talvez só eu soubesse aquele segredo, mas nem
mesmo eu era capaz de prever o desfecho daquela história.
A morte nos sorria, dia após dia, mas sempre abraçada
nos outros. Sempre para eles, nunca para nós. Foram-se uma amiga de
uma de nossas colegas, a esposa de um primo meu, a irmã de um
outro... mas, por mais próximo que fosse, eram eles,
e não nós.
Histórias parcialmente acessíveis...
Até que aconteceu. Os dois, coincidentemente, não
vieram trabalhar no mesmo dia. Eu nunca acreditei em coincidência,
que fique claro. E a minha crença fora fortalecida, nunca abalada.
Eles também não retornaram no segundo dia. No terceiro, fomos
avisados que nem as famílias sabiam de seus paradeiros.
Mas foi no quinto dia que o pavor bateu. Estávamos, uma
colega e eu, buscando em algumas caixas, no terceiro andar, quando
ouvimos... um grito horrível de medo, beirando à histeria, e um
baque seco, vindo do andar acima. Corremos para fora e subimos às
escadas de dois em dois degraus.
Visualizei a tia da limpeza estirada ao chão,
desmaiada. Um cheiro acridoce e desagradável envolveu-me conforme me
aproximei. Estava de joelhos, erguendo a cabeça da mulher, coberta
de sangue, quando minha colega parou na porta. Vi suas pernas
vacilarem, enquanto ela levava as mãos à boca e engolia um grito.
Agarrei-a pelos ombros, quando suas pernas cederam e seu
corpo pendeu para trás, em direção ao precipício das escadas.
Ajudei-a sentar, escorada na parede, enquanto ela, ainda com a boca
tampada pela mão, apontada, com a outra mão, trêmula, para dentro
do quarto andar.
Meu nariz nunca funcionara direito, e eu era totalmente
incapaz de decifrar aquele cheiro asqueroso apenas com o olfato. Não
precisei: acompanhando o dedo da minha colega, meus olhos foram
capazes de auxiliar meu sentido enfraquecido. Dejetos e secreções
humanas ocupavam grande parte do carpete.
Ela estava lá dentro, em pé, com os braços abertos
como se esperasse um abraço. Estava às sombras, e a pouca luz a
circulava pelas costas, apenas o suficiente para que eu visse que ela
estava nua; sua beleza despida, ao meu ver, em uma vulgaridade
incomum.
Me aproximei devagar. Pude ver seus olhos arregalados e
a boca aberta em “O”. Avancei temendo o que quer que fosse.
Duvidava que ela estivesse simplesmente ali, por cinco dias, nua e
esperando um abraço. Meu pé trancou no corpo flácido da faxineira,
e eu parei instantaneamente. Meu instinto me dizia para ter um
cuidado sobrenatural.
Espremi meus olhos, forçando-os. Ela jogava os seus
contra mim e movia-os para o lado da porta. Tentava me avisar que
tinha algo ali. Forcei mais os meus, havia mais coisa nos dela...
havia medo. Medo pelo que tinha além do umbral da porta, escondido
pela parede. Medo que eu desse mais um único passo para frente.
Levei a mão às costas, sacudindo-a, pedindo
silenciosamente, naquele movimento, que minha colega sentada a
segurasse. Segurou; da distância que estávamos, ela deveria estar
em pé... ou quase. Gritei para que ela trouxesse mais gente,
enérgico, e pulei três degraus para baixo.
Um cano de ferro, sujo de sangue, cruzou a porta,
raspando o jaleco da minha colega e batendo com força na parede. O
braço que emergia do umbral estava torto. Ele apostava em um ataque
surpresa, que nocautearia o intruso antes que este pudesse ter
qualquer reação.
O cano bateu com força contra a parede, arrancando um
pedaço comprido, mas superficial, de pele da minha testa. Joguei os
braços para frente, segurando o cano que tremia devido ao impacto,
enquanto minha colega descia deslizando escada abaixo. O braço, em
ângulo desconfortável, não teve força para manter a arma quando
puxei.
Foi, então, a minha vez de apostar e perder. Esperei
que ele não saísse da sala, que pensaria desesperadamente em uma
forma de reverter a situação e manter-se na vantagem. Bom, ele se
manteve em vantagem, mesmo saindo do esconderijo. Seu olhar
ensandecido não me assustou menos que a machadinha que tinha nas
mãos.
Girava o machado em uma das mãos. Eu sabia, e ele tão
bem quanto, que aquele movimento era difícil de se manter, mas, uma
vez se movendo, a arma desferiria ataques quase impossíveis de serem
evitados. Minha testa latejava, e um pouco de sangue chegou ao meu
olho, ardendo e cegando-o, enquanto eu descia um pouco mais.
Como que atraído pelo corte, ele mirou o alto da minha
cabeça, esticando o corpo para frente e para baixo. Ele apostava na
força de um único ataque. Mas aquele fora fácil de desviar, bastou
que me abaixasse. A adrenalina me permitiu um contra-ataque tão
tortuoso quanto os golpes dele.
Girei o cano de baixo para cima, pela esquerda,
acompanhando o avançar do braço dele. Acertei o cotovelo, quase sem
força, os ombros escapando de seus lugares, mas suficiente para
fazer sua mão amolecer e a arma cair. Mas talvez o erro fora meu, e
não dele.
Como se total e antecipadamente calculado, ele ergueu a
perna até o joelho lhe encostar na barriga, e empurrou-a para
frente, jogando o corpo para trás. A sola do tênis sujo me acertou
no rosto, quebrando-me o nariz e quase deslocando meu maxilar.
Meus ombros penderam para trás, a cabeça sendo jogada,
o sangue do nariz descrevendo um arco. Desci, embolando-me sobre mim
mesmo, a escadaria até o meio-nível. Ele deixou as armas caídas, e
avançou cerrando as mãos. Eu sabia, e acho que ele também, que até
agora eu tivera sorte, apenas.
O primeiro soco desceu com todo o peso de seu corpo. Eu
tentei rolar para o lado, mas não consegui evitar. O punho me
acertou na nuca, fazendo minha cabeça quicar. Virei-me de bruços,
enquanto ele se preparava para o próximo soco, e joguei as pernas
para cima.
Por pura sorte, sempre ela, acertei-o nos bagos com
força suficiente para fazê-lo hesitar. Aquilo lhe deu mais raiva, e
me deu tempo para me arrastar para os degraus que desciam, e
levantar-me. Pude ouvir passos rápidos pela escadaria. Mas ainda
estavam a um andar e meio abaixo.
Ele me agarrou pelo pescoço, em uma gravata. Os braços
não defeririam golpes, então abracei-o do jeito que pude. Joguei o
corpo para trás, tirando os pés do chão. Ele perdeu o equilíbrio,
dando dois ou três passos para trás. Foi o suficiente para que eu
enrolasse minhas pernas nas dele, e jogar meu peso para a direta.
Caímos de lado, sua cabeça fazendo um barulho feio
contra a quina de um dos degraus. Os braços afrouxaram em torno do
meu pescoço, mas não o suficiente. Meu braço, pelo outro lado,
quebrou ao bater nos degraus sob o peso dele. Houve a certeza, mas
não a dor.
Os demais colegas chegaram correndo. Nos desvencilharam
e levantaram. Tentei falar, mas foi inútil. Minha colega foi capaz
de explicar o que ela tinha visto antes de correr e deduzido pela
cena que encontraram. Foram preciso quatro rapazes para contê-lo,
enquanto ele rosnava e tentava se soltar. Havia raiva em seus olhos,
mas não sanidade.
Fui à frente das demais colegas, a garganta ainda
lutando para abrir, o braço mole do lado do corpo, dobrando em
ângulos impossíveis enquanto eu subia os degraus. Não quis
segurá-lo: não estava doendo, e achei que doeria se o levantasse.
Saltei a tia da limpeza e atravessei a porta de supetão.
Não deveria haver um cúmplice. E se houvesse, eu já tinha feito o
suficiente para morrer como “herói”, ou o que o valha neste
caso. De qualquer forma, realmente não havia ninguém. Avancei
direto em direção a ela.
Às minhas costas, uma colega acendeu as luzes. Havia
sangue, fezes, urina, vômito e o que mais fosse possível sair de um
corpo humano vivo por todo o carpete. Mas isso abalou ferozmente uma
única colega, que deixou sua própria contribuição de sujeira, em
um arroto úmido demais para ser só de gazes.
O que nos deixou apavorado foi a visão dela. Estava
presa à uma gigantesca armação de metal, o corpo todo sustentado
por ganchos grandes, como os de açougue. Costas, braços e pernas
suspensos do ar. Suas pupilas estavam presas por ganchos pequeninos,
impedindo-a de fechar os olhos.
Ela estava consideravelmente machucada pelo corpo todo.
Ao desviar os olhos, fui capaz de reconstituir toda a situação.
Havia um colchão grosso, jogado atrás da armação, sujo de sangue,
e comida enlatada pelos cantos. Havia também baldes, panos – uns
sujos, outros limpos –, e produtos de limpeza.
Ele a usava na cama, de todas as formas possíveis – e
eu desejei que isto fosse uma figura de linguagem: desejei que ainda
houvesse alguma sanidade nele para evitar coisas hediondas envolvendo
aquelas nojeiras espalhadas pelo chão, algum rato que pudesse passar
pela sala, mutilações pequenas e coisas próximas.
Quando cansava, a limpava de qualquer maneira e a
pendurava naquele bizarro varal. Ele não queria correr o risco de
que ela ao menos tentasse fugir. Os ganchos estavam enfiados dentro
demais da carne, com uma precisão cirúrgica, para que ela tivesse
coragem de forçá-los.
Ouvi uma das colegas descer correndo, gritando por
ajuda. Seu ultimo grito foi um esgar triste quando ela passou pela
porta, por cima do corpo da faxineira. Vi os olhos dela perderem o
alívio que ganhara ao nos ver, voltando para um pavor de gelar o
sangue. Eu soube antes que a luz se apagasse, sem precisar me
virar...
Adorei teu Blog, muito lindo! Adorei teu conto! Tu escreve muito bem, parabéns!
ResponderExcluirbeijos Cynthya
Vou aguardar o que vai vir mais...
ResponderExcluirCynthya
Rachei muito no "acertei-o nos bagos"... ahsuusauhsauas..
ResponderExcluirParabéns, Erik. Tenho muita admiração pelo seu talento, ainda mais agora que escreveu sobre terror leve, algo que me fascina QUASE tanto quanto aventura medieval e futurista!
Gostei de todos os seus posts, porém esse foi o melhor! Abraços!
Sabe que eu gosto destes contos sem fim, estilo Joe Hill, e gostei de ver que utilizou, eu acho, a idéia dos ganchos daquele filme que nós assistimos uma vez, como era mesmo o nome?! Não vou lembrar agora, mas acho que tu deves lembrar...
ResponderExcluirParabéns pela criatividade...