Conto em voz feminina
*
Ele estava me olhando, tinha certeza. Tomei o cuidado de que estivesse: arrumei o biquíni para chamar sua atenção. Ele era hetero. Eu duvidei que fosse, mas ela me garantiu que sim. E estaria duvidando se ele não estivesse tentando disfarçar que estava me olhando.
*
Ele estava me olhando, tinha certeza. Tomei o cuidado de que estivesse: arrumei o biquíni para chamar sua atenção. Ele era hetero. Eu duvidei que fosse, mas ela me garantiu que sim. E estaria duvidando se ele não estivesse tentando disfarçar que estava me olhando.
Eu tirava e colocava e mexia na blusa aberta que vestia,
fazendo com que nunca a mesma parte da minha pele ficasse aparecendo.
Queria jogar com ele, com a cabeça dele. Ela tinha essa mania de
gostar, de se aproximar de heteros. Dizia que alguns eram legais. Mas
não eram. Eram todos nojentos, asquerosos, pervertidos. E iria
provar a ela.
Mas ele disfarçava bem seu olhar. Só soube que ele
estava olhando (e disfarçando) porque dei a sorte de cruzar olhar
com o dele. Era um olhar intrigado, interessado, que eu pegava quando
já estava subindo em direção à minha nuca, mas que percorria a
maçã do meu rosto, já que me virara, e batia contra o meu. Ficava
como se estivesse conversando com os outros, ninguém percebeu que
era para ter certeza de que ele me olhava.
Ele olhava meu rosto, buscava por meus olhos parece que
somente pelo prazer de manter nossos olhares cruzados. Mesmo depois
de molhada, salgada e com o biquíni soltinho, ele me olhava nos
olhos quando falava comigo. Olhava nos meus olhos, sempre que podia.
Eu sabia que ele havia me olhado, me cuidado. Mas não
estava mais acontecendo. Tinha certeza que ele acompanhara o
movimento do meu corpo, como minhas nádegas e meus seios subiam e
desciam conforme eu caminhava. Certeza de como ele percebeu bem como
eu era uma falsa magra: bem acinturada, com as costelas marcando, mas
de seios grandes, bunda e coxas médias. Ele havia me olhado, mas eu
perdi o encanto... Como?
Ele conversava normal, quase parecia gente. Mas eu sabia
que não era. Quase era capaz de me fazer crer na humanidade em seu
olhar. Quase...
No caminho, eu tinha certeza de que ele havia esquecido
de mim. Só que eu não desistiria fácil, queria meu brinquedo,
minha diversão. Queria ir à forra.
Entramos em casa rindo, e ele já nem se referia mais a
palavra a mim. Não tínhamos assunto, e ele não tinha o que me
falar, diretamente. E, consciente disso, ele não forçava a barra.
Por algum motivo ele queria me convencer de que era um cara legal,
mas não iria. Demonstrando ser inconveniente ou não, ainda assim
ele era inferior.
Sentada na cama, enquanto eles se organizavam, senti a
minha garganta seca. Tirei uma cerveja da caixa – que ele levara e
trouxera da praia – e bebi vários goles. Precisava pensar. Queria
vê-lo humilhado no meio da gente. Queria que ela visse que nenhum
desses tipinhos presta. Foi quando alguém falou (a coisa mais lógica
do mundo) em tomar banho. Me ofereci, quase me atirei na frente dos
demais. Era a oportunidade perfeita.
Mal me sequei; me enrolei na toalha e saí. Meu cabelo
pingava, deixando um rastro pelo chão. Passei de vagar, não
precisava esconder nada agora. Quando abri a porta do quarto, ele já
estava me olhando... nos olhos. Sustentei o olhar, deixando-o o mais
interessado possível. Queria ele nas minhas mãos.
Só desviei os olhos para arrumar a toalha. Quando
voltei, com um sorriso no canto da boca, ele ainda estava me olhando
nos olhos. Meu sorriso safado pareceu não afetá-lo. Só então me
dei conta de quão pesado era seu olhar, quão profundo eram seus
olhos. Seu rosto estava limpo de qualquer expressão, como se ele
nunca tivesse tido qualquer sentimento: não haviam marcas do tempo,
linhas, nada.
Suas mãos estavam entrecruzadas, apoiando o queixo. Sua
alma parecia estar perdida em algum canto inacessível. Mas
certamente ele estava consciente, presente, atento. Seus olhos se
mantinham fixos aos meus, mas era como se não perdessem qualquer
movimento meu. O quarto era minúsculo, e estávamos em cinco,
contando com ele. Meus passos lerdos pareciam cuidadosos aos olhos
dos outros, mas deveriam parecer tentadores aos olhos dele. Só que
ele não desviava o olhar.
Ela estava enrolando um baseado, logo estariam todos
chapados, exceto eu. Com outra toalha, comecei a secar o cabelo.
Queria matar tempo. Ela sorriu pra ele: “esse é um pedaço da
minha vida que não comentei contigo”. “Eu suspeitei”, ele
respondeu. Havia dado aquela mesma resposta quando ela comentou de
nossas pretensões de ir à uma festa LGBT. Novamente, ele estava
tentando bancar alguém que naturalmente não era. Que nenhum desses
nojentos era.
O cigarro passou pelas mãos dela e dos outros dois, mas
não chegou às dele. Ele mentia bem. Já passara o segundo baseado,
o terceiro... Ninguém mais prestava atenção em mim, quando tirei a
toalha. Ele me olhou. Por cima do ombro, o vi vasculhando visualmente
dos meus calcanhares até meu pescoço, e então subir, novamente,
pelo meu rosto e terminar em meus olhos.
“Tu não fuma”, perguntei. Sem desviar aquele
maldito olhar, ele balançou a cabeça em negativo: “e tu?”. “Eu
não, acho fútil”. Ele sorriu. Seria um sorriso bonito, não fosse
por ser de um verme.
“Alguém sabe onde está minha bolsa rosa?”,
perguntei. “Em baixo da cama”, ela respondeu, rindo, tragando o
quarto. Foi quando ele prontamente se abaixou, puxou a bolsa e me
entregou. O restante fumou o quinto cingarro, enquanto eu me
maquiava. Já havia perdido as contas de quantos haviam queimado
quando precisei de ajuda.
“Mano, dá uma mão aqui? Senta aqui e segura o
espelho pra mim”. Mas aquela bicha só me olhou. Achei que era pelo
tampo da caixa estar molhado. Ele achou o mesmo, e me alcançou sua
camiseta para secar a tampa. “Vem cá, mano, senta aqui, por
favor”, só que aquela bicha começou a rir, pegou o bagulho e não
se levantou.
Mas ele se levantou. Nos olhamos novamente, e ele se
aproximou. Sentou-se e esticou a mão: queria o espelho. Entreguei.
Seu braço se posicionou no joelho, o punho curvado no ângulo certo.
Parecia acostumado àquilo. E estava: o espelho só se movia quando
eu desviava o olhar para trocar as “ferramentas”.
“Ele é um querido, te falei”, ela disse, a voz
trancada com a respiração. “É sim”, disse. O olhei, e ele
retribuiu o olhar. Sabia que eu estava mentindo, nenhum de nós fez
qualquer menção de disfarçar. “Vai demorar muito essa
'maquilaji” toda? Não era
simplezinha?!”, ela estava ficando puta, mas não parava de fumar.
“É discreta!, mas o processo é elaborado. Quando tu for mulher,
vai entender”, eu já estava ficando irritada. “Eu sou mulher!
Depois de tantas transas, tu ainda não tem certeza?”, e gargalhou.
Os três gargalharam alto. Ele sorriu e me olhou. Não pude evitar
rir; e ele me acompanhou com um barulho quase agradável na garganta,
e um sacolejo dos ombros.
A cada toque de maquiagem, eu desviava meus olhos em sua
direção. Ele estava me olhando fixo. Não me encarando, mas
prestando atenção no que eu fazia. Sua expressão quase me
convenceu de que era genuíno aquele interesse no meu maquiar. Mas
não era. Não vindo de uma criatura tão baixa. Aos poucos, quando
percebeu que eu não pararia de olhá-lo enquanto não fosse
retribuído da mesma forma, seu olhar se clareou, se fixou no meu. A
maquiagem em torno dos meus olhos ajudou no meu olhar sensual. Ele
estreitou os olhos. Era toda a resposta que tiraria, e não consegui
entender o que significava.
Havia terminado de me maquiar, mas não tinha certeza da
roupa. Só então eles foram se tomar banho e se arrumar. Ficamos só
os dois ali. Fiz mensão de me levantar, e ele já estava em pé. Até
agora, ele não havia me visto direito; apenas de costas. E estava
indo embora. “Não, tudo bem, pode ficar”. Esperava que ele fosse
me olhar e sair, que agiria daquela maneira polida e fingida. Mas ele
voltou, sentou na cama e deitou.
Ficou contemplando o teto o tempo todo enquanto eu me
vistia. Eles entravam e saíam do quarto, entre pegar uma coisa ou
outra, ir para o banheiro e descer para o carro. Mas não havia
ninguém quando precisei de uma opinião. “Que tu acha?”,
perguntei. Ele se ergueu em silêncio, e me olhou. Havia colocado o
vestido mais curto e justo possível, e um scarpin preto. “Queria
uma opinião feminina, mas...” e sorri.
Ele me observou de cima abaixo, exatamente como eu
queria. Me sorriu e eu pré-ouvi um “está linda”... mas ele
começou a colocar defeito. Apontou descombinações e desencontros.
Ele fora falsamente delicado: soube disso quando me olhei. Parecia
uma puta de posto de gasolina de rodovia federal, mas, sínico,
apontou onde minha roupa não combinava e deu sugestões.
De fato, ele sabia do que estava falando. Fui obrigada a
concordar, a ponto de pedir à ele uma opinião sobre meus brincos.
Dali, fomos à festa combinada. Conversamos pouco. Eu dancei por nós
dois, ele só me observou. Chegamos caindo de sono quando voltamos;
eu dormi o caminho todo de volta.
Era o meio da tarde, já. Eu me levantei, esticando as
costas. Ele ainda dormia, no chão. Os outros haviam desaparecido do
quarto.
Tropecei nele, propositalmente. Estava com um pijaminha
curtinho que ela me dera. Era lindo, e eu o achava extremamente
sensual. Ele se torceu para um lado ou outro, lentamente. Esticou os
braços, ergueu o pescoço, esfregou os olhos. Mal me viu e esfregou
os olhos novamente. “Bom dia”, disse, e me sorriu, com os olhos
escondidos pelos punhos.
Sorri, sem perceber. Me virei num susto, enquanto ele se
sentava. Todo mundo deveria estar na praia, era o combinado: conforme
acordássemos, iríamos indo à praia, sem acordar os outros. Mesmo
pisando no colchão onde ele estava mal sentado, com as pernas
abertas entre as pernas dele, eu tirei a blusa. Parecia que ele
finalmente tinha me percebido. Se piscou e pareceu desconfortável.
Como todos os outros, ele era nojento. Todo aquele joguinho na frente
da minha namorada caíra por terra quando ficamos sozinhos e ele se
deparou com meus seios nus.
Só que ele virou o rosto, discretamente, como se fosse
um movimento qualquer, e não me olhou mais. Endireitou o corpo e
baixou a cabeça. Tentou se levantar. “Desculpa, eu... eu vou sair.
Desculpa...”
Aquilo me irritou muito. Ele era hetero,
obrigatoriamente estava pensando asquerosidades. Mas estava se
fazendo de bom moço. Joguei a blusa em seu rosto. Ele paralisou.
Parecia respirar fundo; certamente sentindo meu cheiro no tecido. Mas
ele retirou rápido a minha blusa, e chegou a impelir o corpo para
cima e para frente.
Coloquei o pé em seu peito e o empurrei para baixo.
Deitei por cima dele, impedindo-o com meu pouco peso que ele se
mexesse. Nossos olhares se cruzaram, mas os olhos dele demonstraram
um pouco de aflição. Ele se moveu embaixo de mim, mas não
conseguiu sair: estava em uma posição desprivilegiada, em
decorrência da minha. Só sairia de baixo de mim quando eu quisesse.
Aproximei meu rosto com o sorriso mais sacana que eu
tinha. Nossas respirações se tornaram uma só, então eu o beijei.
Seus lábios não se moveram quando encostei os meus. Então forcei
minha língua contra seus lábios, que demoraram, mas cederam.
Certamente seria para me beijar. Entretanto, seus dentes continuaram
cerrados. Movendo os lábios devagar, ele falou. Ele falou!
“Não”, seu tom parecia suplicante. Eu sorri e lambi
seus lábios ressecados pelo sono, mas ele riu. “Tu não foi com a
minha cara desde o primeiro momento”, agora ele parecia debochado.
“Não sei porque está fazendo isso, mas sei que tu me detesta por
algum motivo que não sei, então, por favor, pára. Por ti, não
faz”. Eu ri, e passei as mãos pelo abdomem dele. “Tu gosta de
mulher, e eu respeito isso. Não precisa provar nada pra ninguém.”
Eu paralisei. Ele respeita? Desde quando homem respeita
alguma coisa em uma mulher? Sem querer relaxei o corpo e afastei o
rosto. Ele suspirou em alívio, e desviou o rosto. Fiz uma nova
tentativa: levei minha mão à sua face, dizendo “tudo bem”, e
trazendo seu rosto de novo para frente. Foi quando percebi que ele
estava chorando. Lágrimas escorriam sem que ele fizesse qualquer
barulho.
Eu não sou assim. Nós não somos
todos iguais”. Eu fui obrigada a gargalhar. Fui abusada
sexualmente. Fui estuprada para que eu aprendesse a gostar de homem.
Fui humilhada e agredida no Ensino Médio. E era ele quem estava
chorando. Eu não entendi, seria impossível compreender isso de
alguma forma, por mim. Meu sorriso azedou, mas eu insisti em tentar
novamente. “Eu não fiz nada pra ti. Por favor, não faz isso
contigo, nem comigo. Não vou comentar nada, nunca, com ninguém. Só,
por favor, não faz isso.”
Aquilo fez eu me sentir estranha. Saí
de cima dele, recuei. Tirei a bermuda, virada para ele, que ficou o
tempo todo de cabeça baixa. “Psiu!, que tu vê aqui?”, mas eu me
sentia anestesiada. Estava com as penas abertas novamente, ele tinha
visão total da minha vagina. Mas preferiu olhar diretamente aos meus
olhos. O movimento mais lógico seria subir pelo meu corpo, mas ele
só abriu os olhos quando seu rosto estava na direção do meu. “Uma
mulher linda e adorável que gosta de outras mulheres”. “Não sou
anormal?”, perguntei. “Porque seria?!”. “Qual a diferença
entre nós dois?”. “Nenhuma.”. “Nenhuma?”. “Nenhuma!”.
“Então porque eu fui tão agredida e tão humilhada por vocês?”.
“Se eu soubesse, não poderia te fazer a mesma pergunta. Não sou
um monstro como os que te machucaram, nem como os que me machucaram.
Não escolhi ser hetero, não teria sido, depois do que me aconteceu.
Tu é assim, eu sou assim. Sou o que sou, sou apenas eu.”
Eu virei de costas e vesti meu
biquíni. “Tu me acompanha até a praia, ou vai ficar dormindo?”,
e sorri. Meu sorriso foi sincero, desta vez, e ele percebeu. Secou as
lágrimas e me sorriu de volta. Me pareceu até agradável, desta
vez, e eu não consegui entender o motivo. “Licensa para eu trocar
de roupa?”, ele pediu. Eu ri. “Acho que tenho o direito de ver o
que nos faz diferentes.”, mas virei as costas e fui até a porta.
Não confiava nele, ainda; mas era fato que ele não era igual aos
outros.
Muito bom.
ResponderExcluir